segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Chaves e contra-chaves

Era noite gelada. A chuva fustigava violentamente a janela desengonçada e o vento assobiava com insistência pelas frinchas da madeira ressequida.


A porta segurava-se apenas no trinco. Estivesse longe ou perto, não precisava de fechadura. O trinco da aldraba  era o suficiente. 
Ninguém entraria sem chamar diversas vezes, batendo com força.

Outros Invernos já tinham deixado as marcas do tempo. Havia pequenas frestas por onde espreitava o escuro da noite que os dedos do vento iam alargando.

Na lareira, ardiam alguns paus, que pareciam querer extinguir-se deixando o velho ainda mais encolhido dentro do capote que lhe servia de agasalho. Com as suas mãos rugosas puxou carinhosamente para si, as abas laterais, ajeitando-se contra um arrefecimento indesejado.

Os seus olhos estavam perdidos naquela chama, que frouxamente lhe alumiava os pensamentos. Nem ele próprio sabia do que pensava. Tantas voltas deu no tempo e nas recordações que nenhuma lhe ficou gravada. 

Sobrava-lhe o vazio das noites de Inverno, húmidas da chuva que teimava em cair com bastante força. Parece que o frio hoje é mais pesado, dizia para consigo. Outro tempo dava uma corrida e o sangue aquecia de imediato e ficava bem, mas... agora......!

Na cama, tinha aqueles cobertores grossos e as mantas feitas de retalhos. Era lá que se escondia nessas noites, escuras de breu, acompanhado dos seus pensamentos e das muitas orações que teimava em fazer diariamente.

Seja o que Deus quiser. Vamos indo como pudermos.
Quem sabe se amanhã o tempo melhora. Talvez venha bom tempo...!!!

Pelas minhas chaves e contra-chaves o tempo deve levantar....Hoje já se ouvia o canto do mar....
O pôr do Sol foi mais avermelhado.........
Era bom que viesse Sol e que as terras secassem um pouco.

Com tempo limpo, talvez pudesse procurar alguma lenha para me aquecer.
Estas noites frias até o sono me levam.

As chaves e as contra chaves correspondiam em estudar e escrever como foi o tempo nos doze dias antes do fim do ano e depois nos primeiros doze dias do novo ano.

Do dia vinte ao dia trinta  um de Dezembro eram anotados os dias com todas as características  de = chuva, frio, sol ou vento. Estes doze dias eram as "chaves".
Depois, nos primeiros doze dias de Janeiro, anotavam o tempo em "contra-chave". 
O primeiro dia de cada grupo, corresponde a Janeiro, o segundo a Fevereiro e assim sucessivamente.

Deste modo previam o ano para as suas sementeiras ou colheitas. Poderia haver diferenças muito grandes, mas eles lá sabiam entender e sempre afirmavam:
- Este tempo está muito instável.....

Estava sozinho. Os filhos casaram. Eram quatro e todos emigraram.
A sua Virgínia tinha morrido há duas décadas. 
Agora sentia ainda mais o peso do frio e da solidão. Um dia acabo aqui sozinho e ninguém dá comigo.
Seja o que Deus quiser. Entrego-Lhe a minha dor.

Recordava o tempo, em que casados de fresco, se aninhavam os dois no calor da cama.
Gostavam ambos de conversar e enquanto esperavam o sono reviviam as suas viagens, as suas alegrias e tantas peripécias que já tinham aturado.


Recordava ainda aqueles anos de namoro até construírem esta casa que habitaram a 06 de Março de  1943. Dia do seu casamento. Depois o nascimento dos filhos, o seu crescimento. A vida aqui em casa com tudo sempre programado. 

Nos seus olhos azuis encontrávamos muitas perguntas sem resposta. Viveu muitos anos sem os pais que morreram quando ele era ainda uma criança. Depois as dificuldades que enfrentou e venceu. 


Era um homem habituado a pensar.....e equacionar o modo de sair das situações difíceis. A resolver sabiamente cada um dos problemas, fossem eles os seus animais doentes, ou o arranjo da nora para tirar água do poço. Nunca voltou as costas ao trabalho.

Ainda hoje procuro encontrar as chaves e contra chaves de tanto amor e dedicação à família.
Procuro entender aquele aceitar a vida com tantas privações sem se queixar de nada.
Levaste contigo esse olhar azul mas deixaste a esperança e a vontade de vencer sem desrespeitar ninguém.

Deixaste esta força que te recorda com tanto carinho como se estivesses ainda à espera de um sorriso que acorda o nascer do Sol ou que se reflecte nas pequenas gotas de orvalho nas rosas do nosso jardim.
Luíscoelho




35 comentários:

  1. tudo fica mais dificil com a perda,e nem sempre o problema é a perda mas sim o que ela leva de nós.como sempre belo para aplaudir de pé e não sentado.

    Luis obrigado pelos seus comentarios e pela amizade.

    espero que encontre tudo que há para encontrar.

    Filipe Assunção

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  2. luis
    Acho que me torno repetitivo, mas que dizer perante mais uma "estória" de vida, contada com pormenores que só o conhecimento e a vivência com o "personagem" permite.
    Abraço

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  3. Muitas vezes as perdas do caminho são insuperaveis,,mas vamos nos adaptando a elas e ao que fica pra tras...abraços de boa semana pra ti amigo.

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  4. Quantas histórias, hem, Luis?! E quanta vida elas nos revelam!

    Abraço
    João

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  5. Obrigado pelo comentário objetivo e direto que fizeste em meu blog...
    Agradeço imensamente pela crítica...

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  6. Olá Luís
    Com o passar do tempo, só nos restam as lembranças. Ainda bem que as temos, isso significa que vivemos as perdas e os ganhos com intensidade.
    Grande abraço

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  7. Um texto muito bonito.
    Ainda bem que guarda tantas recordações bonitas do antepassado pobre e sofredor.
    Parabéns Luís Coelho.

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  8. Já chamei pessoas próximas de "amigo"
    e descobri que não eram...
    Algumas pessoas nunca precisei chamar de nada
    e sempre foram e serão especiais para mim.

    (Clarice Lispector)

    Feliz Semana....Beijos meus! M@ria

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  9. Olá, Luis!

    Velhice e solidão combinadas são osso duro de roer.
    E chama de lareira sempre traz de volta o passado, e a nostalgia do que se teve e entretanto se foi, só deixando recordações para remoer...
    Gostei de ler esta evocação de alguém que não conheço, mas que tu certamente conheceste bem; uma forma de homenagem, que sempre nos faz sentir bem.

    Abraço amigo.
    Vitor

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  10. Meu querido amigo

    Adoro ler as suas histórias muito bem contadas...muito reais, sempre nos revemos nalguma frase...nalgum momento.
    Já mereciam um livro...são vida de muitos de nós.

    deixo um beijinho
    Sonhadora

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  11. Luis, que beleza seus escritos... me fizeram viajar, refletir na vida... parabéns por sua sensibilidade.
    Doce semana amigo...beijos...
    Valéria

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  12. entre perdas e ganhos

    a chave de um sensível coração
    no azulado olhar

    muito bonito!

    um abraço

    manuela

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  13. Os sentimentos profundos
    também se descrevem com palavras simples. Faze-lo é uma arte...

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  14. Com o avançar da idade é comum fazer-se estes retrocessos... como que uma procura e uma "última" tentativa de apego à vida (mesmo que passada)... Já vi muitos processos destes, mesclados de uma imensa solidão...
    Muito triste, deixar-se que vidas se percam assim... no nada!
    Abraço

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  15. Ao ler seus textos, ganho duplamente: surgem à minha frente imagens nítidas feitas pelas suas palavras e há sempre uma lição a aprender. Muito obrigada.

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  16. Luis,
    Suas histórias são rica em detalhes, sofredoraS, mas de uma realidade muito proxima.
    Tanto que, me lembrei do meu pai, que perdi a tão pouco tempo, a ferida não se fecha.
    BJS.

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  17. Meu Querido Amigo Luís;Desculpa não vir mais cedo. Em nome do Júlio quero dizer-te:Muito Obrigada...

    ***O teu texto tocou-me de uma forma tremendamente profunda.Tu, Luís, sabes bem porquê.Continuo a ler-te com a mesma avidez e satisfação desde o dia em que te "conheci".Adoro estórias da vida real, tão bem contadas que parece entrarmos, estarmos presentes em todo o seu enredo.Muita Linda a homenagem que prestaste a esses olhos azuis...

    Adorei Luís...

    ****Mais uma vez peço desculpa pela minha ausência mas, a pouco e pouco, estou a tentar visitar e agradecer a todos os meus amigos a força e a coragem que me transmitiram para continuar...

    PARABÉNS/Muitos Beijinhos

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  18. Também fiz uma prosa sobre termos uma chave para entrar em casa, termos um lugar para viver, e de os avós deixarem a porta sem fechar à chave, hábitos que já se perderam.

    Beijinhos.

    laura

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  19. Mais um excelente texto!
    Parabéns Luís
    G.J.

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  20. Querido amigo.

    Viajei na sua história. Pareceu-me estar assistindo um filme, onde em um coração há muitas saudades.
    A perda da esposa amada. Depois, a solidão que pouco a pouco, invadiu o seu espaço. O seu coração.
    Que Deus o abençoe e lhe dê muitas alegrias.

    Beijos no coração.

    Muito obrigada pela honra da sua visita, e pelo comentário atencioso.

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  21. Que lindo texto, Luis! Ao lê-lo revivi a vida de pessoas que conheco e que conheci; pessoas que foram ficando sózinhas porque a vida se alongou; os filhos saem de casa, formam família; a companheira se foi, ou o companheiro e a solidão se instala; é isso o que nos espera se a vida assim nos permitir... se a nossa caminhada for longa. Agora temos os meios tecnicos para nos darem a ideia do tempo, da chuva, do sol, das tempestades; acabaram as chaves e as contra-chaves, mas a solidão não vai sentir a diferênça...vai bater-nos à porta de qualquer maneira. Parabéns pela bela narrativa. Comoveu-me. Beijinhos
    Emília

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  22. Sempre de uma sensibilidade ímpar suas histórias. Saudades recheadas de lembranças!
    Beijuuss n.c.

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  23. Que maravilha, riqueza de detalhes emocionantes que tornam a história assim linda! abraços, chica e tudo de bom!

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  24. Já estava com saudades de ler teu blog, ando meio sem tempo.. mas estou de volta se assim posso dizer. rs
    Abrçs

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  25. Caro amigo

    Todas as histórias
    que falam da vida real
    de alguém,
    presente nas nossas recordações,
    são valiosas.
    Quando escrevemos
    relembramos detalhes,
    um olhar,
    uma voz,
    um silêncio...
    Histórias que sobrevivem em nós,
    e cuja lembranças
    são repletas de sentidos.

    Que sempre haja tempo para os sonhos
    em tua vida.

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  26. Que bonito Luis!
    "Chaves e contra-chaves"
    Bjs.

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  27. Que Deus enfeite teu dia,
    e beije o teu coração.
    Para que tudo se acalme,
    e tenha um dia de amor,
    de esperança no futuro,
    e muito calor humano .

    Beijos & Flores.......M@ria

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  28. Olha, revi-me um pouco nesse texto: a minha infãncia na aldeia, o frio, as dificuldades....mas sempre uma enorme força de Vencer as adversidades.
    Depois o Tempo se encarrega de os levar os que nós amamos...e ficam o desalento, as recordações....
    Lindo e triste esse texto.

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  29. Ó Luis, de certezinha que perdeste a chave do resteas, só pode! ahhhh dou pela falta dos amigos, espero que esteja tudo bem.

    beijinho

    laura

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  30. Caro amigo Luís!
    Que lindas histórias nos contas dos tempos das montas de retalhos,das chaves e contra chaves, e depois de uma vida toda de dedicação à familia, acaba o resto dos seus dias sozinho entre quatro paredes, recordando coisas que queria esquecer, e outras que queria lembrar sempre,mas já lhe vai faltando a memória.
    Parabéns pelo o excelente texto.

    um abraço,
    José.

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  31. Luis:

    Quem não tem recordações para encher, ou preencher, os dias que virão e que só conheceremos quando a eles chegarmos, é porque não viveu, ou viveu sem amor, sem sonhos sem nada do que é feita a vida.

    O seu comentário no meu lugar chegou na altura certa, e o enigmático não é mais que a realidade de muitos de nós, num mundo sem valores.
    Por isso ela nem uma lágrima...
    Maria

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  32. Luis,

    Através de um fragmento pela noite adentro nos transporta para a história do personagem ao longo da vida! Parabéns!

    Beijo,

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