(foto google)
O tempo corria lento. Agora aposentado tudo seria diferente. Ninguém sabia o que iria
acontecer, mas contava já ter tempo para fazer as coisas que mais gostava e que foi deixando para depois, para o tempo - Quando tivesse vagar. O seu trabalho era sempre mais importante.
Haveria de poder fazer:
Pinturas, desenhos, leitura ou até
trabalhos com madeira e outros materiais.
Haveria de ter tempo para brincar com os netos. Quem sabe se eles lhe iriam ensinar coisas novas que ele nunca aprendeu?
Haveria de ter tempo para brincar com os netos. Quem sabe se eles lhe iriam ensinar coisas novas que ele nunca aprendeu?
As recordações povoam os dias e avivam a imaginação.
Cada pessoa construirá os seus próprios sonhos.
Com a idade, as forças amolecem e cada um redobra a sua imaginação para contornar as situações mais difíceis.
O homem sentou-se na soleira da porta. O
degrau servia-lhe de assento e a parede oferecia suporte às suas costas
cansadas.
Distraidamente ouvia os passarinhos à
distância de um assobio e o seu olhar corria com lentidão todos os terrenos que
se alongavam no horizonte.
O seu quintal era tão pequeno nesta
imensidão do mundo e da vida. Lá longe, mais ao fundo, as oliveiras bordavam de sombras
o verde das searas.
Agora já sem forças, aceitava aquele lugar
onde antes não podia sentar-se e descansar.
Lentamente recordou os dias de trabalho
e de privações. Transformou tudo, ali à sua volta, com a força dos seus braços
e a teimosia do seu querer vencer, e ainda, a preocupação de dar aos filhos uma vida melhor que a sua.
Ali arrancou o pão que os alimentou a
todos e até procurou a água adormecida na aridez e profundidade da terra. Agora
tudo era diferente.
- Porque será que Deus nos dá as coisas
melhores no fim dos nossos dias? Agora podia viver melhor e sem tantos
sacrifícios!...
- Vendo bem as coisas não pode queixar-se...Fez o que pôde.
O silêncio e a quietude das coisas
aconchegavam-lhe os pensamentos. Depois sonhava como quem semeia ou construía
como quem brinca.
Distraidamente meteu a mão ao bolso e procurou o
canivete. Agora era a sua companhia. Habituou-se a ele. Servia de faca ou de
ferramenta de trabalho. Abria-o sempre que precisava e depois, no final,
fechava-o e voltava a guardá-lo dentro do bolso direito das calças de fazenda bastante polida. Todas as manhãs, quando se vestia,
certificava-se que o tinha ali consigo.
Viu perto de si, um pedaço de cana verde
que os netos, cansados da brincadeira, por lá deixaram. Foi buscá-la. Afagou-a
com carinho. Limpou-lhe o lixo e aqueles fios das folhas
arrancadas à pressa.
Os seus pensamentos seguiam a cana que se
ia transformando nas suas mãos.
Acertou as pontas com um corte mais
delicado. A cana começava a brilhar por tantas voltas que lhe
dava e sem querer começaram a criar entre eles uma história.
O tempo parou. A cana rodava cada vez mais
e também se colocava em posições opostas.
Por vezes, parecia ser ela a dar as
ordens.
- Faz assim e depois assim...Desta maneira
fica melhor...Faz mais devagar para que eu me sinta bem nas tuas mãos cansadas.
Fez-lhe uma pequena cavidade a meio e
depois outras duas mais abaixo e mais pequenas. Pareciam os botões do bibe do
seu neto mais novo.
Levou-a à boca como que a dar-lhe um beijo.
Afinal estavam cada vez mais próximos. Parece que a sua relação se acentuava em cada novo toque.
Finalmente soprou uma e muitas outras
vezes procurando melhorar o som ou a transmitir-lhe a vida que lhe queria
dar. Finalmente os seus dedos grossos e desajeitados foram tapando os buracos
abertos e de cada vez saía uma nova melodia. Criou-se entre eles uma empatia e
ambos estavam felizes.
O velho fechou a navalha e guardou-a no
fundo do bolso direito das calças. Nesse momento a flauta, sentindo-se livre e senhora
daquelas mãos começou a dançar. Pareciam duas crianças embaladas no mesmo
sonho soltando melodias simples e inexperientes.
Junho/2014
Luíscoelho