
A picota (agro-museu Dona Julinha Ortigosa)
As madrugadas eram frias pois a geada ainda brilhava nas plantas adormecidas. Aquela aragem cortava-nos o rosto e as mãos. Era o mês de Março. De quando em vez, o Sol brilhava por umas horas, mas logo a seguir vinha uma saraivada de chuva, granizo e uma ventania que parecia levar tudo na frente.
- Se não parecesse mal, enfiava as mãos nos bolsos, dizia o tio Carnide. Nestes dias passava pela sua adega e bebia um copito de aguardente, em jejum - era o mata-bicho.
Depois, ia para a cozinha e comia uma malga de sopa com os filhos.
O tio Carnide era o irmão mais velho da minha Mãe, por isso o identifico assim.
Nas outras histórias apenas aparece o indicativo = Ti =, que é uma forma muito antiga de nos referirmos a alguém " de idade madura"
Coitado, como ele sofria com o frio. Lembro-me de olhar para aquele rosto magro, com uns olhos vivos muito pequeninos e as orelhas a desfazerem-se com as frieiras e o frio. Parecia que se arrancasse todas as escamas ficava sem orelhas.
Seguiam para o campo, trabalhar todo o dia e trocando tempo uns com os outros. Hoje vinham trabalhar para o tio e nos dias seguintes, o tio ia trabalhar para os outros pagando esse tempo.
Nunca falhavam nos dias combinados. Aqui aprenderam a respeitar os compromissos e a palavra dada, sempre com o maior respeito
-Eh, rapaziada vamos lá a isto, que o frio já passa, e esfregando com força uma mão na outra, agarrava o cabo da enxada e começava a cavar a terra à volta das videiras.
- O diacho da terra está tesa ....diziam alguns dos rapazes mais novos para o provocar.
O tio Carnide sempre com aquele sorriso de paz respondia:
- É o gelo que se entranhou neste barro, mas olhem que assim a bicharada que infesta a vinha também morre, se Deus quiser.
Ainda que tivesse entendido a maldade da conversa respondia por outra linha e não dava ocasião para outro tipo de conversa maldosa.
O tio Carnide era muito religioso. Cumpridor dos mandamentos de Deus e da Santa Igreja.
Nunca lhe ouvimos um palavrão nem mesmo aqueles termos muito usados na gíria popular.
Certo Domingo, depois da Missa, chamou o filho mais velho, o Adelino e disse-lhe:
- Até que a mãe faça o almoço, nós vamos lá acima ao Vale regar o milho e o feijão.
Ali, naquele Vale, a água escorre em fiosinhos de todas as barreiras laterais.
Os mais antigos, fizeram pequenos tanques cavados na terra, para onde encaminhavam as águas nascidas por ali perto. Ainda hoje existem pequenas poças ou tanques que vão juntando essa água.
Depois, a um canto, construíam um estrado de madeira, para poder tirar a água para regar a horta, dividindo a distância entre a água e o terreno circundante.
Muitas manhãs, estavam ali a tirar água a cabaço ou então com a "picota".
A picota era constituída por um "esteio" de madeira terminando na parte superior com uma abertura em V, onde era encaixada uma vara de pinheiro fixa por um eixo, como se fosse uma balança.
No extremo que tocava na terra, era atada uma pedra para contrapeso e no outro extremo e que ficava para cima era pendurada outra vara mais fina com um balde na ponta.
Um homem em cima do andaime puxava a vara com o balde para dentro do poço enchendo-o, e logo a seguir, fazia o inverso, puxando para cima, até agarrar o balde que despejava num tabuleiro que corria directamente para a terra..
O contrapeso, ajudava a dividir a força quando o balde vinha cheio de água.
Nesse Domingo as coisas não lhe correram bem. O Adelino, caiu para dentro da água com todo o andaime por três vezes.
Da primeira vez repararam o que puderam e voltaram a tirar água, mas foi coisa de pouco tempo pois voltou tudo a cair.
Tentaram reconstruir ainda uma terceira vez e o resultado foi o mesmo.
Então o tio Carnide voltou-se para o filho e disse-lhe:
- Vamos embora para casa ! O Domingo deve ser respeitado como dia de descanso e dia do Senhor.
O tio encarou todos aqueles desaires, como um aviso divino.
Parece que nunca ninguém ficou rico, com o trabalho feito em dias santos.
A Partir desse dia nunca mais exigiu trabalho feito aos Domingos.
Contava-se que o tio Carnide, tinha uma memória prodigiosa. Onde pusesse as mãos, fazia arte.
Apareceram cá as duas primeiras bicicletas.
Uma era a do Senhor Pereira. Pessoa abastada, com uma fábrica de adubos.
A outra era a dos Barbeiros. Famílias também de muitas "posses".
Quando viu pela primeira vez uma bicicleta ficou parado a estudar a máquina e o funcionamento.
Nem pensar em ter uma máquina daquelas na sua vida....pensava ele.
Então passava noites a imaginar para ver se conseguia construir alguma coisa parecida. Era muito jovem ainda e com muita imaginação.
Com uma serra cortou um pinheiro em dois cortes simétricos, de onde saíram as rodas.
Depois, calculou o centro de cada roda e com um trado, furou-as, de modo a encaixar-lhes um eixo.
Arranjou um quadro e um guiador. Faltavam-lhe os pedais e a corrente que ele não conseguiu fazer nas suas poucas horas de lazer.
Então pegava na "traquitana" e levava-a até ao cimo das ladeiras. Sentava-se e guiava enquanto se deixava deslizar pela encosta num êxtase de pura felicidade.
A sua alegria nestes momentos era indescritível. Todos os rapazes da aldeia seguiam as suas habilidades sempre com esperança de puderem também dar uma volta.
Não sei como chegou às sua mãos um harmónico, nem que tipo de instrumento era. Sempre pensei que seria um tipo de concertina e que ele habilidosamente lhe descobriu os sons.
Então, era vê-lo a animar todos os bailarícos, nas desfolhadas ou outras festas cá na aldeia.
Corriam todas as casas onde pudessem conviver com alegria saudável.
Conta-se também, que um dia, vinha ele lá dos lados da Lameira, que deve distar uns cinco quilometros da sua casa. Andou a tocar por lá, a convite de alguns amigos que ainda hoje o recordam com muito respeito e saudade
O José Jorge e toda a Família. Aquilo é que eram amigos....!
Era noite cerrada, e nesse tempo também havia malfeitores, escondidos em cruzamentos e outras matas fechadas onde apenas se ouvia o sibilar do vento por entre os ramos dos pinheiros ou a corrida de algum coelho que se assustava à sua passagem.
Nessa noite apenas se guiava pelas estrelas e pelas clareiras por onde costumava passar durante o dia. O rapaz estava com um pressentimento ou estaria mesmo com medo...?
Já teria percorrido quase metade do caminho, agarrando sempre muito bem o harmónico, quando avistou um jumentinho por onde ele deveria passar.
Mas que belo animal.
Mansinho como poucos que tenho visto....! Reparou o tio, que decidiu de seguida: !
Vou montar nele e depressa chego a casa.
Assim pensou e assim fez. Nem se preocupou com mais nada.
Chegando a casa deixá-lo-ia partir e o animal irá procurar o dono.
Logo que se acomodou no dorso do burro, aquele desandou numa corrida louca que o tio Carnide nem se lembra por onde passou nem quanto tempo durou aquela viagem.
O burro parece que voava por entre os arbustos e valados fundos .
Havia uma ligação do seu corpo ao animal que não podia saltar nem sair daquele lugar.
Contava o tio Carnide que de repente o burro parou perto de um silvado enorme e medonho.
Deu um pulo mais forte, diferente dos anteriores, fincando-se nas patas dianteiras, atirando com o tio e o harmónico para dentro das silvas.
Depois, o jumentinho, voltou-se e disse-lhe:
- "quem vai ....vai... e quem está.... está....Nunca mais te metas com quem tu não sabes....nem conheces..."
O tio levantou-se sempre agarrado ao seu harmónico e procurou o caminho para casa.
Ele, nem queria acreditar no que lhe aconteceu.
Já tinha ouvido contar algumas destas histórias, mas pensava com os seu botões que isso eram mesmo histórias.
Deitou-se, e adormeceu de cansaço.
No dia seguinte, bem cedo, olhou-se com muito cuidado a pensar:
Devo estar todo amassado e cheio de arranhões das silvas.
Curiosamente não tinha um único vermelhão nas mãos ou na cara.
As suas mãos continuavam limpas sem picos nem outras marcas.
Logo volto lá acima para me certificar ....vou, vou...!
Não sei se ele chegou a confirmar .
Lá ficava sempre a história com aquela lição de moral:
....Quem vai...vai...
....Quem está ..está...
Este tio nasceu em 1905 e morreu com cerca de 90 anos. Era um homem de um trato muito sociável e de uma bondade sem limites.
Na aldeia todos o respeitavam e pediam a sua colaboração nas situações mais difíceis.
luiscoelho