(foto google)
Passaram-se já muitos anos. Muitas coisas estavam adormecidas na poeira do tempo que teima em sepultá-las no esquecimento. Lentamente fui recordando a Ti Charuta. A casinha pequena onde viviam, lá em baixo no meio dos pinhais, a caminho do Paúl.
Ao lado da casa, havia um carreiro por onde as pessoas caminhavam a pé e, logo a seguir, havia o caminho fundo de terra batida para os carros de bois.
Do lado Sul desse caminho havia uma vedação de espinheiras que limitava a Quinta do Costa Pereira.
Cada Inverno, as chuvas arrastavam a areia do caminho, tornando-o ainda mais fundo e estreito.
A pobreza e a resignação foram as sombras que agasalharam a família da Ti Charuta.
Todos os dias víamos o fumo a sair pelas telhas do telhado. Ela tinha de fazer um caldinho para os filhos e o fogão era uma fogueira no canto da casa.
Com pinhas e alguns paus secos, faziam uma fogueira onde se aqueciam e cozinhavam os alimentos.
Todas as manhãs, depois dos catraios saírem para a escola, ela e o marido iam ganhar o dia, como jornaleiros nas casas dos agricultores desta região.
Ao meio dia, comiam por lá a sua bucha (farnel).
O pai contou que este casal apareceu por aqui sem nada. Nunca soube de onde vieram. Viviam ambos numa tenda feita com paus e ramos para se abrigarem.
Um dia, o povo, aqui da aldeia decidiu construir-lhes um abrigo melhor. Cada um deu o que podia. Meteram mãos à obra. Construíram esta casinha que eu conheci.
O proprietário deu o terreno delimitado por marcos. Começaram por abrir os caboucos que encheram de pedras. Eram os alicerces, base das paredes de adobes (barro amassado e seco formando um tipo de tijolo grande).
Depois das paredes feitas montaram o telhado, duas portas e uma janela. Era uma divisão única mas já estavam abrigados das chuvas e do frio cortante do Inverno.
Ali criaram um rancho de filhos no maior respeito que se podia ter. Não se ouviam gritos nem palavras agressivas.
Na Páscoa recebiam a visita do Senhor Padre. Havia uma mesa encostada à parede onde colocavam sempre uma moeda pequena. Era aquilo que tinham.
O Senhor Prior olhava a moeda e colocava lá mais algumas para que pudessem comprar pão para a ceia deles e dos filhos.
O Sacristão de capa vermelha, metia a mão num saco que ele segurava juntamente com a Cruz e deixava em cima da mesa algumas amêndoas pequenas e coloridas.
Os olhos dos garotos brilhavam com avidez procurando a amêndoa da sua cor preferida. Faziam contas e mais contas mas no final não chegariam para todos. Eles eram muitos e faltavam duas, mesmo tirando o pai e a mãe. Talvez eles não as quisessem.
O homem de capa vermelha não as contou. Não seria mais pobre e poderia ter deixado mais algumas...que pena...
A mãe viu a angústia nos olhos dos filhos. Quando o padre saiu pela porta da casa, ela lançou-lhe ainda um olhar de suplica que ninguém entendeu.
Os garotos vieram com o pai para a rua e viram o cortejo dirigir-se para a casa seguinte. A casa da Maria do Rio.
Depois entraram todos e esperaram que a mãe fizesse a divisão.
Era ela que dividia o pão em fatias iguais, mas as amêndoas, essas eram mais difíceis de dividir. Os garotos iriam reclamar... o pedaço do mano é maior que o meu....
O silêncio corria por toda a casa e os foguetes deixaram de se ouvir.
Então ela olhou os filhos com o seu ar de mãe e um sorriso de amor e disse-lhes:
- Não chegam para todos, mas todos queremos um bocadinho para recordar este dia.
Vamos parti-las. Depois vamos procurar fazer quinhões iguais.
Estenderam um pano branco na mesa e o pai foi buscar uma pedra. Limpou-a o melhor que pode e depois começou a parti-las uma a uma. A chama da fogueira reacendeu-se. Cada um recebeu pequenas migalhas de todas as amêndoas.
Nos olhos de cada um brilhava uma alegria que seria de todo impossível de descrever assim como o sabor de cada pedacinho do açúcar de amêndoa.
Os anos passaram. A Ti Charuta viu os filhos crescerem e saírem de casa. Depois da Escola Primária foram servir para casas abastadas. Eram todos rapazes e muito trabalhadores. O mais velho foi com um feirante vender calçado pelos mercados e feiras.
Mais tarde montou o seu negócio. Hoje dizem que é um homem de sucesso.
Os outros seguiram-lhe o exemplo e ouvi dizer também que são pessoas realizadas.
A Ti Charuta morreu velhinha pouco depois do homem falecer.
Levava no rosto a simplicidade e o sorriso de gratidão ao povo desta terra que os ajudou nas dificuldades.
Desta casinha apenas me sobram alguns traços visuais.
Venderam o terreno e lá construíram uma bonita vivenda onde agora vive uma família que veio residir na nossa Aldeia.
Luíscoelho