O meu carrinho. Como era lindo aquele popó, azul escuro, com um tecto de abrir.
As portas, estavam encaixadas num só eixo, ao meio do carro. As da frente abriam da frente para trás, e as outras abriam detrás para a frente.
Tinha uma condução leve e muito agradável.
O Victor comprou aquele carro na sucata. Reparou o motor, mandou-o pintar e depois enfeitou-o com uns extras que o embelezavam bastante.
Parecia novo. Era dos primeiros carros fabricados em Mangualde.
Apaixonei-me por ele.
Nunca me tinha acontecido nada assim. Este carro mexia comigo.
Há gostos para tudo. Há quem goste de tabaco, de bebidas. Há quem goste de roupas e também há que goste de carros, dos mais caros e potentes.
Aprisionar-me por um carocha quase com a minha idade não é normal.
Foi amor à primeira vista. Fiquei de cabeça perdida pelo carro, e já só pensava nele.
Parece que naquelas semanas perdi o apetite. Não suportava a ideia de o ver a passear outros, de não me ligar importância como se o carro tivesse alguns sentimentos ou pudesse tomar decisões.
Isto não é normal...! ( pensava eu nas noites em que me via a passear com ele ).
Que sonhos lindos....
Não tem explicação para tanta casmurrice.
O Victor, queria vendê-lo, e eu queria comprá-lo.
Estava de todo ceguinho. Não via que estava a dar todas as minhas poupanças por um monte de sucata sem valor comercial.
- Quanto é que estás a pedir pelo carro...? Perguntei
- O preço são quarenta mil escudos. Sem o rádio e pronto pagamento, respondeu o Victor de uma assentada e rematou ainda:
- Não dou garantias de nada pois o carro é velho. Foi reparado, mas ainda assim, o material desgasta-se e está sempre a pedir alguma coisa.
Perguntei quando poderia entregá-lo.
- Já no próximo sábado, respondeu.
Conforme estava combinado, lá fui naquele sábado procurá-lo.
Levava as notas num molho, contadas e recontadas para que nada faltasse e estivesse tudo certo.
Eram notas de mil escudos, a nota de valor mais alto nesse tempo.
Entreguei-lhe o dinheiro e ele deu-me as chaves do carro com uma breve explicação do funcionamento das mudanças, luzes, arranque, travões, etc.
Ele também gostava muito do carro e estava a custar-lhe a separação.
Resumiu a conversa ao mínimo indispensável. Guardou o dinheiro e entrou em casa.
Eu olhava para o carro com o coração a bater num ritmo mais do que acelerado.
Sentei-me, respirei fundo e pensei:
- Vamos seguir as indicações e tudo vai correr bem.
Puxei pelo encosto do motor de arranque. Estes carros tinham um cabo que puxava um dispositivo do sistema eléctrico para o arranque do motor, como se fosse a chave de ignição.
Ouvi aquele trabalhar ritmado e leve parecia uma canção.
Procurei a mudança para sair daquele beco apertado. Uma vez para trás, e depois, já dá para sair.
O meu nervosismo era inexplicável.
Há, que maravilha!.... Que prazer....correndo estrada fora.
Tinha até vontade de parar, e dizer a todos : Tenho um carro...! É meu....
Parece que toda a Aldeia devia saber e partilhar a minha alegria.
Não sei descrever os sentimentos e as emoções que me invadiam em catadupa.
Estacionei o carro, mesmo em frente da casa dos meus pais. Preocupado que não estorvasse a ninguém.
Parece-me ver ainda a cara do pai quando me viu chegar com o Citroen.
Olhou, mediu e disparou:
-Podias esperar mais algum tempo, e comprar uma coisa melhor......
Não gostou do carro, pensei eu, após ouvir aquele comentário.
- Pai, este carro por agora vai servir e depois se verá !
Nem eu sabia o que me esperava com tantas avarias. Eu e o Citroen, nos próximos cinco anos, vamos fazer uma linda história.
As mudanças estavam num braço colocado no centro do carro e ao lado do volante .
Puxando esse braço para o condutor, entrava a primeira mudança. A segunda era para a frente. Para o lado oposto e com as mesmas posições era a terceira e a quarta.
A marcha atrás tinha tambem um toque especial.
Os vidros das portas da frente eram compostos por duas partes e quando se queria ter a janela aberta dobrava-se a parte inferior para cima encaixando-a na outra parte fixa.
Quando o dispositivo de arranque não funcionava tínhamos de recorrer a uma manivela que encaixava na parte da frente do motor fazendo-a rodar com força até arrancar.
Em tempo de chuva o carro nem sempre arrancava e então tínhamos de recorrer à manivela com muita frequência.
Aconteceu também fazê-lo de empurrão, pela estrada fora ou ainda quando era possível estacionar numa descida. Com o tempo fui adquirindo conhecimentos e estudando os segredos do carro.
Um dia fui ao cinema com outros jovens conhecidos.
Quando saímos, perto já da meia noite, o carro não pegava.
Então, desengatei as mudanças, e encostando o ombro no lugar da porta empurrei com força até ganhar balanço. Entrei de seguida no carro e meti a 2ª mudança e ele começou a andar.
Estávamos no coração da cidade de Leiria e a essa hora ainda havia muita gente a passear nas ruas Era Verão e a temperatura era agradável. As pessoas riam-se do espectáculo com o carro e diziam:
-Oh pá isso antigamente andava com dois cavalos.......!
- Pois, pois, mas agora precisa de mais um.... respondi, com desembaraço.
Esperei que os meus amigos entrassem no carro e regressamos a casa.
Uma manhã, quando ia para o trabalho, dei boleia a duas vizinhas, de meia idade, (cinquenta anos) que iam para a cidade.
Seguíamos pela estrada 109, quando um camião em sentido contrário se atravessou e nos bloqueou a estrada para fazer uma ultrapassagem. Encostei-me o que podia para a direita, de modo a que não nos esmagasse a todos e travei o carro. As bermas da estrada estavam cheias de buracos e lombas e o Citrêen começou aos balanços grandes conforme passava pelas covas e cabeços.
As senhoras gritavam desesperadamente:
- Ai, N. Senhora nos valha que morremos todos..........Jesus nos salve...... Já depois do carro parado ainda elas gritavam cada uma mais do que a outra apertando a cabeça com ambas as mãos.
As portas abriram-se e uma grande poeira entrou para o carro.
Estávamos todos com medo...
Naquele instante, ao fundo da ladeira, depois da curva do Loural, apareceu a brigada da Polícia que mandou parar o motorista do pesado.
Vieram até ao Citroen e indagaram se estávamos todos bem, se não havia feridos nem estragos materiais.
- Sr condutor veja se tem alguma coisa partida na sua viatura......
Fiz uma inspecção rápida e não encontrei nenhum estrago relevante.
- Então pode continuar a sua viagem. Disse o Polícia.
O casamento do David Mestre
Abeirou-se de mim um dia e com um ar delicado perguntou-me se queria ir ao seu casamento e se poderia transportar os noivos após as cerimónias na Igreja da Gândara dos Olivais.
Assim fizemos.
Após as cerimónias os noivos entraram no carro e andámos por aí com o descapotável .
Eles estavam felizes.
Nesse tempo não eram ainda muito frequentes as fotografias dos noivos, da boda e outros passeios.
Não me recordo mesmo de ver um fotografo naquele casamento. Sei que tinham construído uma casa nova e não tinham dinheiro para muitas coisas.
O David Mestre e a esposa ficaram muito gratos e ainda hoje falamos nesse dia e na amizade que nutríamos uns pelos outros.
Aos sábados de manhã a mãe costumava ir ao mercado da Vieira de Leiria fazer a venda de algumas coisas cá de casa.
-Batatas, couves, feijão, alguns frangos ou coelhos, milho e até alguns ramos de flores.
O pai, viu no carro uma maneira de irem mais rápido e directos ao mercado.
Assim na sexta feira de tarde, começavam a preparar e a juntar as coisas que queriam levar para vender e no dia seguinte era só carregar e seguir viagem.
Estava tudo pronto e as portas fechadas. Então punha o carro a trabalhar.
A mãe sentada atrás e o pai ao meu lado iniciávamos a viagem que demorava mais ou menos tinta minutos. Ajudava a transportar as coisas para dentro do mercado e depois vinha sentar-me no carocha a ler um livro até que a venda estivesse concluída.
Um dia no regresso, o pai lembrou-se de cortar umas giestas na mata nacional para trazer para casa. As giestas deveriam ter 1,50 de altura e também eram as que tinham mais folhagem. Com elas fazia vassouras para a eira.
Limpava os toros que amarrava com arames ou cordéis e depois com elas varriam as sementes da eira. Por vezes com os ramos mais pequenos faziam outras vassouras para usar em casa.
Para transportar aquelas giestas grandes no Citroen tinha de abrir a capota e com cuidado ir metendo os paus para baixo e a rama como tinha mais volume para cima, exterior do carro.
A mãe, agora, sentava-se ao pé de mim, e o pai, sentava-se atrás para segurar aqueles pés das giestas.
Nem no Carnaval se viam carros assim enfeitados.
Parecia que a floresta ia em andamento pela estrada. Hoje seria impensável repetir estas proezas.
Passados uns quatro anos o carro estava com um aspecto novo mas com o coração cansado.
Falei com o mecânico que se prontificou a repará-lo, mas também não dava garantias. Os sinais de cansaço eram já evidentes e após uns quilómetros voltaria a parar.
- Ora esta....! Que vida a minha...! Não queria por nada separar-me do meu carocha.
Havia vários interessados, mas não me compravam a amizade que eu lhe tinha, nem me curavam o desgosto de o ver ir com novo dono.
Uma tarde quando o limpava o meu primo Victor Coelho pediu-me para ir dar uma volta com ele. Tinha acabado de tirar a carta naquele ano e não queria gastar muito dinheiro.
Eu compro-lhe o carro por vinte mil escudos. Vou gastar quase outro tanto para o conservar em condições de andar na estrada.
Tinha de aproveitar esta oportunidade, para não perder mais e deixar o carocha seguir o seu curso e o resto dos seus dias.
O novo dono ainda andou uns seis meses com o carro mas tambem acabou por vendê-lo e eu perdi-lhe o rasto.
Hoje gardá-lo-ia com todo o carinho. São preciosidades de outros tempos.
Sei ainda que a matricula iniciava com as letras AE
luiscoelho