Marcas da nossa cidade - 2009
Veio de
longe, de muito longe. Veio do Baixo Alentejo.
Nas voltas que a vida dá, veio completar aqui os seus dias. Aqui viveu, trabalhou e também aqui criou muitas das suas raízes.
Os pais
eram assalariados. Viviam com uma sopa e um pedaço de pão de trigo. Tinham
gravado no rosto o selo da pobreza envergonhada.
Não tinham possibilidade de dar aos filhos uma
formação diferente da sua, nem poderiam ensinar-lhes a esperança de uma vida
melhor.
No entardecer
dos dias, de regresso a casa, a situação agravava-se. O pai sofria o cansaço que
trazia nos ossos e na alma a dor de um salário pequeno, quase nada. Depois tinha de suportar o mau feitio da mulher.
Parecia
uma ladainha que se repetia todas as noites.
Quase nem o deixava sentar na ponta do banco da cozinha :
- Porque
assim e assado … E mais isto e mais aquilo … Nunca mais saímos desta miséria…
- Pois
sim...Tá, bem tá...Tu lá sabes...Nem quero discutir contigo. Irra, que mau
feitio…
Parecia
que aquela mulher tinha prazer de contrariar o marido.
A
Mariazinha gostava de ir à Igreja e de participar em todas as celebrações, mas
a mãe estava sempre a ralhar com ela.
- Isso de
missas e de igreja é só para quem não tem mais que fazer...Ouviste?
Já te
disse, vezes sem conta, que não te quero ver por lá. Aprende a fazer alguma coisa
melhor.
- Podes
bater-me à vontade. Eu irei sempre que puder à catequese e às celebrações
religiosas cá na terra. Nunca deixei de fazer as minhas obrigações e tu não podes
impedir-me.
- Estás a
pedi-las...Estás, estás, respondia a mãe, levantando a mão com ar ameaçador.
Um dia o
pai finou-se. Foi uma coisa que lhe deu. Coitado! A vida foi
dura demais.
Depois
que casou com aquela rapariga parece que ainda foi pior. Ela era esperta, mas
aquele mau feitio era uma desgraça. Quem cá fica, diz povo, sempre se governa,
o mal é de quem se vai.
Outros acrescentavam:
- Esta vida é uma ilusão.
Ele
estava cansado de aturar a mulher e de acreditar que um dia a sua vida iria
mudar para melhor...São mentiras que carregamos todos e todos os dias.
Algum
tempo depois da morte do pai o filho foi para a tropa. Depois continuou na polícia.
Arranjou uma namorada e por lá ficou, pela cidade.
A
Mariazinha, continuava junto da mãe, mas a vida era cada dia mais difícil. Um
dia juntou as suas coisas e veio para Lisboa.
Não
esperou que o irmão lhe arranjasse emprego.
- A vida
é um desafio, dizia confiante.
Conseguiu
trabalho num armazém, onde organizava as facturas de débitos e créditos e os
saldos respectivos. Estudou e trabalhou. Nunca cruzou os braços.
Na rotina
dos dias e das pessoas com quem se cruzava, acabou por conhecer o seu futuro
marido. Ambos alimentavam um sonho e também o desejo de se completaram nas
suas carências e afectos.
Após algum
tempo de namoro, organizaram o seu casamento e foram viver para outra cidade.
Depressa fizeram novas amizades. A sua alegria era contagiante. Todos gostavam
de estar perto da Mariazinha.
Os anos
amadureceram as amizades, o respeito, a bondade e os sorrisos de todos com quem se cruzavam.
Deram aos
filhos o melhor dos seus anos e das suas vidas.
Não se
pouparam a esforços para construírem a sua casa e a sua família. O marido era o seu melhor amigo. Estava sempre ao seu lado e ambos formavam um todo. O amor era vida que saía
das suas palavras e acções.
A
felicidade não tem tempo nem tem preço. É uma dádiva que vai acontecendo e que
nos alimenta em cada dia.
Alzheimer
Um dia, ainda antes de se reformar, foi ao seu médico para fazer exames. Gostava de
saber as razões do seu cansaço.
Em pouco
tempo o médico diz-lhe:
- Está
aqui uma indicação de alzheimer. Não se assuste, hoje existem tratamentos. Vamos
cuidar de si para que se sinta sempre bem e por muitos anos.
No
silêncio que se seguiu surgiram duas lágrimas que brilharam correndo
desamparadas naquele rosto sempre sorridente. Tudo acaba…Que vida a minha.
- Jesus
não podes fazer isto comigo...Confiei em Ti. Cura-me.
A doença
foi progressiva e os medicamentos foram retalhando aquele corpo de mulher.
Ao lado,
o marido também sofria, mas com muita paciência foi ajudando em tudo o que lhe era possível.
Respondia sempre com o mesmo carinho a todas as perguntas, repetidas vezes sem conta.
Conservava sempre
um sorriso encantador e com palavras amigas convidava-a a caminhar. Depois colocava-se na sua
frente e estendia-lhe as mãos num convite para uma dança a dois para a ver de
novo a dar uns passos.
A
Mariazinha vencia aqueles momentos de medo que a paralisavam e apoiada no marido recomeçava a andar
com normalidade.
Era bonito
vê-los numa luta contra a doença que a ia desgastando.
Mais tarde as
noites, a higiene pessoal e tantas outras tarefas comuns tornaram-se num pesado
fardo.
No mesmo
quarto separaram as camas. Talvez assim pudessem descansar, mas a situação piorava cada vez mais.
A
Mariazinha está lúcida e sabe das suas fraquezas.
Ambos
escolhem um lar onde tenha assistência. Aceitou esta nova residência como quem
procura a cura dos seus males.
Os
médicos alteraram a medicação.
Já passaram mais de quinze anos desde que lhe foi descoberta a doença.
Diariamente o marido passa as tardes fazendo-lhe companhia e aos Domingos leva-a até a casa onde almoça com os filhos e descansa na sua cama. Aceita o regresso ao Lar mas, no seu interior, fica revoltada porque não pode já passar sem a ajuda dos que lhe prestam assistência.
Diariamente o marido passa as tardes fazendo-lhe companhia e aos Domingos leva-a até a casa onde almoça com os filhos e descansa na sua cama. Aceita o regresso ao Lar mas, no seu interior, fica revoltada porque não pode já passar sem a ajuda dos que lhe prestam assistência.
Neste mês
fomos visitá-la. Era a festa das suas 70 Primaveras.
Conheceu-nos
e sorriu. Depois fechou-se num pesado silêncio.
Os seus pés não aceitam a
ordem para caminhar, as palavras ficam presas na garganta. Não consegue
expressar-se e os seus olhos agora estão suplicantes. Ajudem-me.
Partilhámos
o bolo de aniversário e cantámos. Vimos o seu rosto de agradecimento onde a dor é uma marca constante. Depois saímos prometendo voltar brevemente.
Esta
promessa tem muito peso. Não cura, mas alivia muito.
Ficámos a
pensar:
- Onde
está a Mariazinha que nós todos conhecemos?
Ai amigo esta doença é um pesadelo. A avó de meu marido teve e a minha mãe também. Tem dias que é tão difícil tratá-los e lembrar quem eram, como eram, e verificar o que são.
ResponderEliminarUm abraço e bom fim de semana
Que lindo , muito bem escrito teu conto! mas uma verdadeira tristeza chegou na vida de Mariazinha pena! Eu acredito seja uma das piores coisas perder a independência e precisar de outros até para nossas necessidades íntimas e básicas. Vejo lá na minha mãe, que não é Alzeimer, mas algo parecido. Ela está lúcida, por dias muito má, noutros tranquila... É fogo! E sempre que saio de lá fico me perguntando, até quando isso? Até quando deixar uma pessoas aqui, apenas para dizer que está somando anos?
ResponderEliminarPosso estar errada, mas não creio que isso seja estar viva! abração, chica
Caro Luís
ResponderEliminarTraça aqui o retrato de uma mulher forte que soube lutar e construir a sua vida.
Infelizmente, veio a doença, essa doença terrível que destrói a pessoa
no que tem de precioso no seu íntimo: a memória que tem dos outros e
a memória que tem de si, progressivamente.
Abraço
Olinda
Amigo Luís: um retrato do que é essa doença mas também a força dessa mulher e do Marido, é uma pena mas a nossa vida tem dessas coisas, sabes que eu vou todos os dias visitar um lar aonde tem lá três pessoas com essas doença, felizmente dois deles ainda andam de pé ainda dizem algumas coisas acertadas mas uma delas já não conhece ninguém não fala, a unica coisa que faz quando lá chego é olhar-me e estender-me a mão aperta-me a mão com força mas nada diz. Gostei de ler o teu texto apesar de eu achar um pouco triste. Bom fim de semana.
ResponderEliminarUm abraço
Santa Cruz
Retalhos e retratos de vida. Imagens de vidas que todos nós conhecemos e até vivemos de perto. Quem sabe o que ainda nos caberá? Não somos imunes.
ResponderEliminarAbraços
Olá Luís,bom dia!
ResponderEliminarUma daquelas suas narrativas muito tocantes tanto pelo modo que vem escrita como pelo tema tratado.Não é fácil lidar com esta doença e fico a imaginar o sofrimento de quem vive na pele o drama,mas esperemos que as pesquisas científicas nesta área encontrem êxito a fim de reduzir cada vez mais os casos dela pelo mundo.
Afetuoso abraço fraterno,
Tenho muita fé que DEUS, com todo o seu poder e bondade, iluminará com mais intensidade a mente do homem, possibilitando-o à descoberta da cura para este mal que tanto aflige a humanidade. Belo conto Luís. Uma guerreira que teve o privilégio de contar com o amor e compreensão do marido e dos filhos.
ResponderEliminarAbraços e um ótimo final de semana para ti e para os teus.
Furtado.
Estes dramas é que me fazem dizer que existem situações bem piores do que morte!!
ResponderEliminarBom resto de fim de semana
Muito belo, muito triste, muito real, muito verdadeiro...
ResponderEliminar70 primaveras... e quantos invernos terá ainda de suportar?
ResponderEliminarDá Deus a doença por castigo?
Mas que pecado grande terá Mariazinha cometido?
Uma tristíssima realidade... e cada vez mais presente nas famílias.
ResponderEliminarSiempre hará una mujer, si no en nuestras vidas, en otras, para demostrar como la de tu texto, cuánto puede una mujer. Un brazo. Carlos
ResponderEliminar*habrá una mujer
ResponderEliminarOlá, Luis!
ResponderEliminarHistória triste e dorida, a da Mariazinha, como tantas outras que há por aí.Que tendem a aumentar com o passar dos anos, e a tornar a vida num pesadelo de que só a morte os liberta...Viver assim não é vida, e duvido muito que valha a pena...
Muito bem construída a história, como sempre.
Um abraço
Vitor
Uma Mariazinha que veio ao mundo sem sorte, meu amigo.
ResponderEliminarHá muitas outras, certamente.
É triste que a vida tenha tantas partidas para pregar...
Que nunca se sabe aquilo a que vamos ser sujeitos!...
Como sempre muito bem contada - pelo amigo.
Desejo que se encontre bem.
Bj.
Irene Alves
Que triste historia, la conozco de cerca porque tuve un tía enferma. Ellos se van, quien sabe dónde...
ResponderEliminarY nosotros nos quedamos esperando respuestas.
Excelente texto.
Besos grandes.
Está ali a Mariazinha meu amigo, aprisionada, se antes o seu corpo lhe oferecia condições para as lutas da vida, de partilhar alegrias e tristezas, hoje este mesmo corpo a aprisiona e ela anseia a liberdade, como um pássaro engaiolado. Luis desculpe de ousei responder a pergunta mas este conto me emocionou e levou=me às lágrimas, que o Pai nos guarde de fim tão triste, abraços Luconi
ResponderEliminarFez-me recordar uma boa amiga que partiu há bem pouco tempo, luís.
ResponderEliminarDepois de ter estado ausente sem sabermos como e onde durante mais de vinte anos.
Boa semana
~
ResponderEliminarUma descrição perfeita e comovente de sentimentos humanos.
~ ~ Tão nova esta Mariazinha!
~ ~ Subscrevo o comentário da São.
~ ~ Uma semana de S.Martinho agradável. ~ ~
Caro Amigo luis Coelho!
ResponderEliminarMais um vez meus outonais olhos ficaram em água ao ler este enternecedor conto de sua lavra, que desvela, sem titubear, como esta nefasta doença manifestou-se na perseverante existência da valorosa e destemida Mariazinha, que depois de muita pertinácia, soube superar os percalços que a vida lhe impôs formando uma honrada família e de supetão descobre que o pavoroso "alemãozinho" veio minar sua existência.
Lembrei de uma película canadense de 2006 "Away from Her", aqui intitulada "Longe Dela", que deixa patente como o mal de Alzheimer, além de desmemoriar cada vez mais o paciente, o debilita deixando totalmente dependente, bem como altera radicalmente a sua vida conjugal, familiar e social.
Desejo intensamente muita força para familiares, amigos e cuidadores das pessoas acometidas deste mal.
Caloroso abraço! Saudações solidárias!
Até breve...
João Paulo de Oliveira
Um ser vivente em busca do conhecimento e do bem viver sem véus!
Meu querido amigo sempre leio os seus escritos com o mesmo carinho, assim como os comentários que me tem deixado e partilhado comigo, PAUSA quer dizer muito talvez até mais tarde, talvez um até nunca mais , talvez que um dia nos venhamos a encontrar algures por qualquer lado do outro lado do Planeta.
ResponderEliminarQuem sabe, os anos pesam os desgosto aumentam e daí quem sabe se esta pausa será para sempre, de qualquer modo valeu muito a pena em nos termos cruzado, compartilhados algumas da nossas experiências, mesmo só em escrita de qualquer modo muito ficou por dizer.Mas o que repartimos foi muito mais, foi creia-me uma sincera e pura amizade.
Beijos de luz, de paz e de muito respeito e num cantinho do meu coração ficará sempre a imagem que de si criei e ficará a lembraça de alguém com quem aprendi frazes maravilhosas da vida que o tempo jamais apagará, voem elas para além do tempo e do espaço.
Boa tarde. é comovente o que escreveu, a vida é trás-nos a injustiça inesperada, parece que existem pessoas que nasceram para sofrer.
ResponderEliminarAG
De lágrimas a caírem, foi assim que terminei de ler este texto!
ResponderEliminarComovente, dramas que conheço e acompanho de muito perto, que me assustam imenso, o facto de ficar dependente é realmente assustador.
Que a Mariazinha volte a ter a vossa visita.
Beijinho e uma flor
A Mariazinha está lá, para vós é a mesma e por isso espera o vosso carinho. Ela não vos conhecerá por muito tempo, mas vós conhecereis e isso é o que importa. Lembrei-me do caso de um senhor que passava os dias junto da mulher com essa doença. Um dia uma enfermeira disse;" o senhor passa aqui todo o seu tempo e ela já há muito que não o conhece; ele respondeu " mas conheço eu e por isso estou aqui " Triste a história, Luis, mas, infelizmente muito verdadeira. Um beijinho e obrigada
ResponderEliminarEmília.
Emília
Tudo nos parece sem solução, quando assim lemos a vida!...
ResponderEliminarUm beijo
Lídia
Uma narrativa clara e crua, a da Mariazinha.
ResponderEliminarUm percurso de vida de privações e aventuras, trabalho e trabalhos, alegrias e tristezas.
História real que nos recorda a fragilidade da nossa condição humana.
Um belo trabalho, Luís.
Oh Luís, assim não vale!
ResponderEliminarSenti duas lágrimas rebeldes porque tive perto um caso doutra Mariazinha.
Tão real, tão bem contado que, parece, que fazemos parte da história.
Eu senti!
Obrigado Luís por estes momentos de vida.
És enorme.
Um abraço
Sua postagem me deixou emocionada, conheço muito bem essa doença. Conheço uma senhora que passa por esse mal. É dolorido pra família, só o amor pra suportar.
ResponderEliminarAbraço amigo!
Olá, LUIS!
ResponderEliminarUma narrativa que nos transporta para a uma realidade dolorosa que atingiu a Mariazinha, levando-a a aceitar a parte injusta da vida, vivendo uma situação que o seu espírito lutador não merecia. Sendo de realçar o amparo e proximidade do marido que se esforçou por dar um pouco de cor à vida da nossa Mariazinha.
Um abraço,
Jorge
Boa tarde luis
ResponderEliminarQue história triste!
Maldita doença que vai vagarosamente destruindo um lar
Abç
Bárbara
UN RELATO MUY TRISTE.
ResponderEliminarUN ABRAZO
Olá Luís!
ResponderEliminarHoje a sua história teve o condão de me emocionar. Revivi momentos muito difíceis passados com a minha mãe, a vê-la a definhar e perder a consciência dia após dia. É uma doença cruel, uma luta inglória na tentativa de reverter a situação sem obter qualquer resultado. São momentos frustrantes que levam à revolta que só se conseguem ultrapassar com amor.
Beijinhos
A Mariazinha pegou uma parte ruim. Relato triste que nos deixa a pensar e lamentar.
ResponderEliminarAbração.
É uma doença terrível que na sua parte final é ainda mais terrível para quem é próximo do que para o próprio doente, porque geralmente já "não está cá". Conheço casos qu era uma obra de misericórdia que o fim chegasse mais cedo...
ResponderEliminarOlá, Boa tarde,Luís
ResponderEliminarRelato emocionante - Mariazinha
Alzheimer é uma doença degenerativa do cérebro e a causa exata não é compreendida e por isso ainda não pode ser tratada de forma eficaz . Ainda que as pessoas tendam a responder diferentes a uma situação difícil, a maioria é propensa a sobrecarregar e sentir estar carregando o mundo nas costas. Em contraste, com as doenças, os nossos padrões desadaptados de pensamento e de comportamento tornam-se evidentes quando da progressão de uma doença, o que nos deixa "desconhecidos" para quem nos conhecia...
Obrigado pelo carinho,belos dias,abraços!
Essa é uma triste doença, que afeta todos os envolvidos pelo amor a quem a tem. Requer grande dedicação dos familiares que, quase sempre, precisam contratar alguém para cuidar do doente. Espero que um dia, não distante, a medicina encontre uma forma de estagná-la. Abraço.
ResponderEliminar