Uma Picota
(Parque de merendas da Bajouca - Leiria e Jardim privado de um artista local)
A pessoa que puxava a picota colocava-se num andaime, estrado de madeira, colocado por cima da água do lago. Puxava a vara e enchia o balde em baixo. Depois puxava para cima com a ajuda do contrapeso e despejava-o num tabuleiro de madeira que corria para a terra. O ritmo tinha de ser certo.
Havia uma lenda sobre uns fantásticos tesouros enterrados naqueles terrenos.
(Parque de merendas da Bajouca - Leiria e Jardim privado de um artista local)
Depois da ceia, sentavam-se à volta
da lareira. A família era numerosa, mas cabiam todos fazendo um círculo
maior.
Os pais protegiam os mais pequenos de
modo que se aquecessem, sem se queimarem.
A vivacidade do lume e as labaredas
eram um convite para um serão agradável. As chispas e as sombras criavam muita
magia em todos os olhares.
No fim do serão, deixavam de
alimentar a fogueira até que ela esmorecia no calor e nas sombras. Os mais
velhos diziam:
- Quem não poupa a água e a
lenha, não poupa nada que tenha.
Antes de se deitarem, juntavam
todo o braseiro para um monte cobrindo-o com a cinza que houvesse,
evitando o perigo de incêndio. Por outro lado, as brasas maiores conservavam-se
acesas até ao amanhecer.
Na manhã do dia
seguinte, desfaziam aquele monte de cinzas, procurando as brasas que
estivessem ainda acesas. Acrescentavam-lhe alguma caruma seca para
reacender a fogueira. Não existiam fósforos nem isqueiros.
Ouvi contar que era frequente irem
pedir lume, algumas brasas, a casa dos vizinhos. Era um gesto
simples, mas de muita valia. Todos precisavam da fogueira para cozinharem
os alimentos e para se aquecerem.
Alguns dias acabava-se o
pão: A tradicional broa de farinha de milho. Nestas
ocasiões, iam pedir por favor, um pão emprestado para se remediarem. Mais tarde, quando coziam a sua fornada,
retribuíam-no. Ninguém recusava um pão, ou apenas parte
dele, para ajudar os vizinhos. Hoje são eles, mas amanhã poderemos ser nós, diziam.
Para passar o tempo ao
serão, faziam-se jogos ou contavam-se histórias. Algumas
vezes sobre acontecimentos da vida na aldeia e outras
vezes, eram contos de bruxas, fadas ou coisas diabólicas que deixavam
os mais novos arrepiados de medo.
Recordo aquela história dos
tesouros escondidos num terreno do avô Carnide. Situava-se logo a seguir à
Quinta do Paul, na encosta das Picotas e antes da pedreira do
gesso. Era um terreno árido e arenoso.
Na parte mais alta, havia uma
nascente natural. Então, escavaram um lago que se enchia da água dessa
nascente. O lago tinha cerca de oito metros de comprimento por quatro de
largura e um metro de profundidade.
No Inverno a água corria por um
regato até ao ribeiro do Paul, mas no Verão era toda aproveitada para
regar os canteiros de milho, feijão ou abóboras.
Esta água era sorteada por mais dois ou
três confinantes uma vez que a Quinta foi dividida pelos herdeiros. Uns dias da
semana regavam uns e nos restantes dias regavam os outros.
A água era tirada à picota. Um engenho
que funcionava como uma balança. Era um madeiro
comprido, de quatro ou cinco metros, assente num eixo de uma estaca
colocada verticalmente. Na ponta desse madeiro colocavam uma vara
comprida onde se engatava o balde e na outra ponta ajustavam o
contrapeso, uma pedra.
A pessoa que puxava a picota colocava-se num andaime, estrado de madeira, colocado por cima da água do lago. Puxava a vara e enchia o balde em baixo. Depois puxava para cima com a ajuda do contrapeso e despejava-o num tabuleiro de madeira que corria para a terra. O ritmo tinha de ser certo.
Havia uma lenda sobre uns fantásticos tesouros enterrados naqueles terrenos.
Contava-se que naquelas encostas
viviam mouras encantadas. Foram Princesas que fugiram dos seus palácios e dos
seus países, e vieram ali esconder-se. Com elas trouxeram os
seus tesouros. Morreram por desgosto de amor, mas os
seus espíritos continuam por ali, junto das suas riquezas.
Foi há muitos, muitos anos, mas nas noites
de luar ainda se viam brilhar aquelas jóias, pedras preciosas de
todas as cores, correntes de ouro, e vestidos
lindamente bordados com brilhantes.
Diziam que nas noites de lua
cheia, perto da meia-noite as jóias brilhavam ainda mais. Parecia
o nascer do Sol naquelas encostas. Elas, ainda apaixonadas, mostravam as suas
riquezas ao luar. Depois, lentamente, tudo ia desaparecendo e as lindas mouras adormeciam em silêncio.
Nunca ninguém
conseguiu aproximar-se naquelas horas. Talvez por medo, quem
sabe...
As pessoas que durante o dia trabalharam as terras nunca encontraram qualquer tesouro, nem uma simples
moeda.
A água da represa continua a
correr silenciosa pelo regato.
Os mais antigos diziam que aquela
nascente eram as lágrimas das infelizes mouras que choravam dia e noite o seu
desgosto de amor.
Luíscoelho
Excelente texto. Parecia que estava dentro do texto, tal a força das recordações. No velho barracão onde vivia, não se contavam lendas de mouras encantadas. Apenas de bruxas e lobisomens, ou mesmo do mafarrico, sempre associado a uma bela e tentadora mulher com pés de cabra.
ResponderEliminarUm abraço e bom Domingo
Tal como a Elvira disse tb me parecia que estava dentro do texto. E fiquei a pensar no amor das moiras encantadas.
ResponderEliminarOlá, Luis!
ResponderEliminarHistórias contadas ao borralho quando as noites eram mais frias, também a mim me trazem recordações de tempos que já vão...
Tal como essa picota, ajuda preciosa para quem tinha terrenos para regar. Quando muitas vezes a água era pouca, e a sua posse fonte de acaloradas discussões...
Abraço e Bom Domingo.
Vitor
sempre que você narra suas estórias, eu viajo nelas. São lindas.
ResponderEliminarLuis, um belo testo. Uma excelente narrativa.
ResponderEliminarAbraço
Luís Um belo texto é bom recordar tempos antigos.Gostei
ResponderEliminarUm abraço
Santa Cruz
Nascido e crescido numa aldeia identifico-me com muitos dos relatos que o luís aqui faz.
ResponderEliminarInclusivamente com os tesouros escondidos que, em conjugação com os livros d' "Os Cinco" e d' Os Ste, alimentavam o imaginário dos mais jovens
Aquele abraço e votos de boa semana
Caro Luís
ResponderEliminarAqui te deixo o cabeçalho de uma partilha que fiz no facebook, de mais este excelente texto.
Abraço
Rodrigo
Caro confrade luís Coelho!
ResponderEliminarDivaguei sobremaneira ao ler suas enternecedoras reminiscências!
Caloroso abraço! Saudações aquecidas!
Até breve...
João Paulo de Oliveira
Um ser vivente em busca do conhecimento e do bem viver sem véus!
Oi luis,
ResponderEliminarLindas recordações dos tempos de outrora, eu também as tenho, mas prefiro não recordar que era feliz e não sabia.
Beijos
Lua Singular
Olá Luís,
ResponderEliminarEsses serões deviam ser mágicos.
Há lendas interessantes, principalmente aquelas que trazem história de mistério e provocam medo. Lembro-me do meu pai contando histórias incríveis e assustadoras de suas viagens pelas estradas, pois houve uma época de sua vida em que ele foi motorista de caminhão. Segundo ele, sempre havia 'assombrações' pelas estradas e nós, filhos, ficávamos morrendo de medo na hora de dormir.
Parabéns pelo excelente texto, cuja narração, de tão perfeita, nos leva para as cenas descritas.
Feliz semana.
Abraço.
É no esmorecer da chama que dá inicio o baile da mesma, essa sensualidade que aparece e quase desaparece em movimentos quase rítmicos, mas desformes, até que acaba por sucumbir.
ResponderEliminarCenas que vivi, ou presenciei, e que me fazem retroceder no tempo.
Estás feito um cronista da terra e das suas gentes, toda uma arte.
Luís como sabe nasci numa Aldeia muito próxima, neste excelente relato revejo-me em algumas das situações aqui escritas. tal como tirar água à picota.
ResponderEliminarGostei imenso.
Tenha uma boa semana Luís.
Beijinho e uma flor
Meu estimado amigo, em muitos sítios de Portugal as coisas mudaram muito.
ResponderEliminarEu não vivo numa zona rural. Vivo num apartamento.
É tudo mais artificial.
Mas lembro-me de em casa dos meus avós existir essa forma de nos aquecermos
e dos serões.
Tenho saudades desses tempos, aliás penso que se perdeu muito
das relações humanas, com os computadores, televisões, etc. etc.
É muito bom ler as suas históias.
Bj.
Irene Alves
Es una lástima que el mundo haya cambiado tanto y que aquellas noches de antaño solamente queden el los recuerdos.
ResponderEliminarUn abrazo.
Luís as tuas histórias nos transmitem sempre sentimentos como a esperança, amor, confiança em saber que para tudo há uma solução,apontando exemplos assim de vidas vividas de maneira simples,mas tantas vezes feliz ... Palavras s que vêm direto, direto ao coração! Abraço fraterno e bom dia!
ResponderEliminarera um outro tempo, em que apesar de se trabalhar de sol a sol,
ResponderEliminartinha-se tempo para serões e contos de mouras encantadas
um abraço, Luís
"Ouvi contar que era frequente irem pedir lume, algumas brasas, a casa dos vizinhos."
ResponderEliminarHoje os vizinhos descem e sobem no elevador e mal se cumprimentam (nem ouvem contos de fadas)
Uma delícia! Os cheiros, os gestos, os costumes, os afetos sempre de permeio a darem consistência ao um modo de contar.
ResponderEliminarBj.
O ouro dos tesouros, Luís, era a transmissão das histórias e dos saberes à volta da fogueira. A lareira era o lar lugar sagrado onde era feita a transmissão oral da tradição, onde se recitava e jogava, onde se trocavam afetos e até se discutiam cordialmente as decisões a tomar no governo da casa.
ResponderEliminarBelo texto, surpreendente para muita gente. É, por isso mesmo, muito importante que se façam estas narrativas.
Sempre uma maravilha estar aqui e te ler, ver o que compartilhas,Adoro! abraços praianos,chica
ResponderEliminarO respeito pela água acabou. Ou melhor, o respeito em si acabou! abraços
ResponderEliminarOi luis,
ResponderEliminarObrigada pelo comentário, deixei um comentário no meu blog.kkk. Gostaria que conhecesse meu blog infantil: Mundo dos Inocentes. Tem um banner no Lua Singular com a pintura de uma menina negra, clica lá e sai no outro blog.
Um beijo
Lua Singular
Muito do que aqui contas eu presenciei, não própriamente na minha casa, mas em alguns vizinhos mais pobres onde não havia dinheiro para os fósforos;Não conhecia essa maneira de se tirar a água para a rega. Ainda sou do tempo em que a minha mãe tinha de tirar água do poço para o uso doméstico., primeiro manualmente e muito mais tarde já com um motor elétrico que a puxava para o depósito colocado em cima da casa; isto já era um luxo lá na aldeia. Tempos difíceis por um lado, mas por outro muito mais calorosos no que respeita às relações humanas. Obrigada, Luis por este belo momento de recordação de tempos idos. Um beijinho e até sempre.
ResponderEliminarEmília
Serões, de antigamente, à volta da lareira,
ResponderEliminarquando necessária era com a picota
do poço se tirava a água é bem verdadeira
não é não nenhuma contada anedota!...
Uma boa tarde para você amigo Luís. um abraço.
Eduardo.
Que grato lo que nos regalas.
ResponderEliminarTiempos cuando realmente habia tiempo de sentarse y juntarse en familia a compartir.
Cariños
Tive dificuldade em abri a pagina, inépcia minha ou problemas da net. Tentei e valeu a pena.
ResponderEliminarBlo o teu texto, tem algo de Torga.
Senti e recordei muitos momentos que ainda me foram familiares.
És um mestre!
Um abraço
Quem teve a sorte de nascer numa aldeia, é facilmente embalado pela descrição de tantos factos que nos fazem perder o momento do "agora" e transportar-se para este "ontem" que me trouxe uma nostalgia enorme. Depois, tem o condão especial de nos levar com facilidade no seu estilo coloquial, e vivo. E as histórias encaixam na perfeição para nos prender ainda mais...Enfim, um prazer!
ResponderEliminarAbraço, Luís
Oi luis,
ResponderEliminarObrigada pelo carinho no meu blog
Hoje a postagem é mais tranquila.kkk
Beijos no coração
Lua Singular
Então somos feitos desse passado! Não tive nada disto mas podia contar a mesma história. Recordo-me dos serões carregados de história que a minha avó gostava de contar quando da sua visita a Angola.
ResponderEliminarAbraço
ME ENCANTAN TUS RELATOS PORQUE LA MAYORIA DE ELLOS SE TRATAN SOBRE LA FAMILIA.
ResponderEliminarUN ABRAZO
Olá Luís! Mais uma vez, nos presenteias com uma das tuas belas histórias. Lembrei-me do meu tempo de criança, quando existia o papa-figo, da mula-sem-cabeça e outras invenções para nos fazer dormir. Eita tempinho bom!
ResponderEliminarAbraços,
Furtado.
Um belo texto recheado de recordações do passado, nos tempos em que os serões eram "vividos em família".
ResponderEliminarNão sou saudosista... mas lamento que tão belas tradições se tenham perdido no tempo.
Não se pode dizer que a vida fosse fácil, mas havia muito calor humano.
Presentemente, para MUITOS a vida também não é fácil, e o tal "calor humano" não existe.
Bom fim de semana.
Beijinhos
Que delícia de história! Fui lendo e sorrindo, como se eu própria estivesse a viver isso. Algo muito próximo passou por mim.
ResponderEliminarBjs
Ponho-me a pensar que em troca do que obtemos com as novas tecnologias, cada vez mais nos desumanizamos e perdemos ambientes únicos como estes que vai relatando...
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