sexta-feira, 16 de abril de 2010

A ti Camila


A ti Camila era uma figura muito característica da nossa terra.
Os filhos cresceram e fizeram-se à vida.
Ela, dedicou-se à venda na praça de Monte Real, das coisas que cultivava no campo com a ajuda do marido - o Menau.

Viviam numa casinha antiga, mesmo junto da estrada 109. Lembro-me de passar por ali e ver aquela porta grande, dentro do alpendre, sempre aberta, sem ninguém por ali perto.

As manhãs passava-as na venda, satisfazendo sempre os desejos dos seus clientes, mas regateando tudo até ao centavo.
Se não conseguisse convencê-los, então com um ar meigo dizia-lhes:
- Venha cá freguesa....não se vá embora.....! Eu perco dinheiro....mas ainda assim.... tenho aqui as coisas e quero vendê-las.

Quando pesava as batatas, as cenouras, as cebolas ou outra coisa dava um jeito com os dedos da mão, alterando o peso, conseguindo reaver a diferença dos centavos.
Artes que só ela sabia e que disfarçava com um sorriso franco.

Nos dias em que lhe faltavam produtos, ela ia junto das outras vendedoras e comprava-lhes as coisas todas que depois voltava a vender com uma pequena margem de lucro.

Geralmente, as outras vendedoras, aproveitavam a oferta para regressarem mais cedo para casa.  Algumas, tinham mesmo de voltar a tempo de aviarem o almoço aos filhos quando voltassem da escola ou ainda para tratar das suas coisas.

A ti Camila, tinha uma burra, a carriça, animal muito estimado por ela.
Para onde fosse uma, também ia a outra.

Saíam de casa muito cedo. Ela gostava de ser das primeiras a chegar ao mercado e expor a sua venda aos olhos dos compradores.

O Menau, marido, aparelhava a burra. Depois ele de um lado e a mulher do outro, encaixavam-lhe as cangalhas.

As cangalhas eram duas caixas de madeira, ligadas entre si por duas correias largas para não ferirem o dorso do animal. 

Carregavam sempre de um lado e do outro, de modo que o peso ficasse justamente equilibrado.
-Já chega de peso para o animal, advertia a ti Camila.
-Se carregamos muito a Carriça atira com tudo ao chão. Eu levo o restante à cabeça.......!

O Menau, olhava para a mulher e dizia-lhe:
- Dá cá isso. Eu vou ajudar-te até lá abaixo, à entrada da Vila. Depois já tu te entendes com o restante da viagem.

Chamava a Carriça e depois de atravessar a estrada 109 seguiam pelos pinhais, atalhando caminho, para chegarem o mais cedo possível. 

Passavam pelas ladeiras do Casal. O homem à frente, seguido da burra e por último a ti Camila.

Aqueles caminhos, eram  muito apertados. Por ali passavam diariamente os carros de bois,  transportando pessoas e bens para tratar das vinhas naquelas encostas solarengas.
Alguns pinheiros bravos teimavam em crescer naquelas encostas quase sem vegetação. A terra era cinzenta de pedaços de gesso e mica que brilhavam ao Sol.

Contavam que naqueles terreiros, mais espaçosos, se juntavam as bruxas em noites de Lua Cheia.
Havia até quem jurasse, pela sua vida, que era verdade, e que já lá tinham ido nessas noites espreitar. 

Que eram umas danças muito bonitas de se verem, só que não sabiam bem porque lhes dava um sono profundo.
Havia ali mistério....havia, havia.....

A burra sabia de cor o caminho. Quando atravessavam a Linha do Oeste,  depois da ponte de ferro, o Menau entregava à mulher a sua carga e voltava para casa.

A ti Camila, então deixava seguir a Carriça na sua frente e lá seguiam até ao mercado. 
Anda carriça, estamos quase a chegar, conversava ela com o animal.

  Encostava a carriça junto à banca da venda e descarregava tudo com desembaraço. No final dáva-lhe uma cenoura, fazia-lhe uma festa de lado e parece que lhe segredava algo mais nas orelhas. 

Depois de a prender numa oliveira que ficava nas traseiras do Mercado, voltava para arrumar melhor as suas coisas e aviar os fregueses que começavam a chegar.
Os encarregados das cozinhas dos hotéis, vinham sempre cedo e com grandes cestos para comprarem as melhores coisas.

-Então senhor Otero, o que me vai comprar hoje......?
Olhe aqui estas nabiças frescas e limpas, a alface ou o tomate....... 
- Quanto pede pelos ovos ? .....E as pêras ...? perguntavam eles iniciando logo uma guerra de preços. 
-Nem pense nisso....é muito caro.
-Venha cá freguez! Quanto é que o senhor me dá....? As coisas também nos custam muito trabalho e dão sempre as suas despesas.

Outros de passagem perguntavam:
- Qual é o preço das batatas novas.....?
- Oh rica amiga....essa batatinha é uma maravilha e eu peço pouco.....cinquenta centavos o quilo. Olhe que já só tenho esta.....! 

- Pese-me aí dois quilos. Pedia a senhora. Estou com pressa para não perder os tratamentos nas Termas.
- Então não quer comprar mais nada....? Olhe aqui estes frangaínhos criados lá em casa...... e as cebolas .....ou os alhos  e o feijão verde para a sopa...?
- Não, hoje não quero mais nada. Pague-se da batata que eu tenho de voltar para casa.

As manhãs eram passadas nisto. Sempre com um sorriso e uma vontade enorme de despachar as suas coisas por um bom preço.

Já perto do meio dia os clientes tinham voltado para as suas casas e então começava a arrumar as coisas que lhe sobraram ou que não conseguiu vender.

Ia buscar a carriça  e começava a carregar as coisas que não podiam ficar, outras deixava-as  em cima da banca tapadas com umas cortinas. Ninguém mexia em nada.

Já com a burra carregada ainda passava pelo Hotel Flora ou a Cozinha Portuguesa, a Pensão Santa Isabel, A Santa Rita, a Primavera etc a  ver se conseguia entregar  as últimas molhadas  de nabiça ou aquelas couves fechadas que mais pareciam repolho lombardo. Agora tinha de aceitar o preço que lhe dessem.

Guardava o dinheiro numa bolsa que andava presa à cintura  e que era dividida em três divisórias mais pequenas. Uma para guardar as notas de papel e outra para as moedas brancas. A última era para as moedas pretas - os centavos.

Dava um nó no lenço que lhe tapava os cabelos brancos, sempre desgrenhados, puxava a carriça para junto do muro do jardim e sentava-se em cima dela.

Começava a sua viagem de regresso a casa percorrendo o mesmo caminho mas desta vez subindo as ladeiras onde agora batia um Sol quente que parecia queimar tudo.

Já perto de casa eram as cigarras que cantavam nos pinheiros fazendo uma sinfonia de endoidecer.

Em casa iria fazer uma sopa para o marido e também para ela aconchegando o estômago com uma peça de fruta ou um pedaço de carne.

A carriça, agora livre dos arreios,  ficava no páteo e com a manjedoura cheia, podia descansar o resto do dia.

A Camila com o Menau iam para a horta mondar, adubar e tratar de tudo com muito carinho.
Já perto da noite começavam a juntar as coisas para a venda do dia seguinte.

luiscoelho

27 comentários:

  1. Olá meu amigo,

    Adoro ler estas histórias. Obrigada!!

    Um excelente final de semana! Deus te cuide! =*

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  2. Meu amigo, tuas histórias me prendem, e olhe, quanta semelhança com personagens do interior como qual convivi.
    Isso é por demais prazeroso, e um convite a conhecer um pouco mais da cultura local.
    Abraços.

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  3. Meu amigo
    como gosto de ler as suas histórias, sempre bem contadas, e que encontramos sempre semelhança, com factos que conhecemos.

    beijinhos e bom fim de semana

    Sonhadora

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  4. Olá Luís
    Após uma ausência forçada cá estou de novo e logo para ler mais uma história de vida, que nessa época era comum a muitas zonas do nosso país.
    A vida era difícil, mas hoje queixamo-nos dizendo que a vida está má...
    Beijinhos
    Lourdes

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  5. Figura típica, tão bem retratada! Parabéns!

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  6. Olá Luís!
    Esta história consegue, para mim, ter cheiro e sabor, tão fácil me é ver aqueles e aquilo que descreve.
    Na família onde cresci - no campo -todos estes personagens ficaram na minha memória.O transporte nas burras - em cangalhas ou no seirão, as lojas(também chamadas de vendas)e estas figuras que à altura desempenhavam um importante papel na vida social dos lugares onde ganhavam a vida.
    Está lindamente contada esta sua viagem a tempos e hábitos do passado; gostei muito!
    Um abraço.
    Vitor

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  7. Boa tarde Luís

    Escusado seria dizer-te o quanto me revejo no teu passado, quando contas historias destas.

    Isto são pérolas que merecem e devem ser preservadas na nossa memoria e partilhadas, para que o tempo não as condene ao esquecimento.

    Um forte abraço e bom fim de semana

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  8. "Não cruze os braços diante de uma dificuldade, pois o maior homem do mundo morreu de braços abertos!" (Bob Marley)

    Feliz Sábado......Poesia & Sonhos!

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  9. ...que lindo é Deus a nos permitir
    viver estes momentos de tantas
    saudades...

    adoro te ler...

    beijo, poeta!

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  10. Olá. Luis
    Já te disse mais do que uma vez que gosto imenso destes teus textos em que descreves, com enorme realismo, estas figuras tão típicas, tão castiças, e que tendem a desaparecer (se é que ainda há algumas...)
    A tua maneira de escrever permite-nos acompanhar, passo a passo, tudo o que nos vais "mostrando".
    Espero que ainda tenhas muitas histórias destas para nos contar.

    Estive a dar uma olhada no post anteior, que me tinha escapado :(((, e parece-me concluir que te vais ausentar por uma semana. Estranho é que o "bilhete" que apresentas é de 2009... Porquê???
    Se realmente vais... desejo que tudo corra à medida dos teus desejos.
    Fico te aguardando.

    Beijinhos

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  11. Brilhante Amigo:
    Um Post fabuloso. Perfeito e majestoso de pureza e beleza.
    Há sempre uma "Ti Camila". No meu caso era a "Ti Judite".
    Recordações que não se vão.
    Parabéns de sinceridade. Adorei.
    Abraço de amizade que nunca esqueci pelo seu talento gigante e enorme.
    Sempre a admirá-lo

    pena

    Excelente, amigo divinal.
    Faz e escreve "coisas" extraordinárias de maravilhar e encantar.
    Bem-Haja, sensível e notável escritor perfeito e amigo.
    Faz deliciar.

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  12. Tens razão Mariazita.
    Eles deveria ter muitos folhetos e deram-nos destes com um ano de atraso.
    É verdade que vamos e é amanhã às 08.30 em frente do Tribunal de Leiria.
    São apenas alguns dias e já está tudo pronto para sairmos, mas parece que o meu coração anda perdido nos cantos desta casa, do jardim e dos meus animais.
    Os meus gatos devem adivinhar porque não me largam.
    O programa parece-me optimo e nem eu, nem a minha mulher conhecemos Madrid.
    Obrigado pelo teu olhar clínico.

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  13. À noite, ela certamente dançava no bosque e sem tontear.
    Mágica no cotidiano, tem razão de ser.
    Vivi tudo junto.

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  14. Prezado amigo, aqui estou eu, visitando seu cantnho. Gosto de "conhecer" os lugares e as historias que contas, parece que estou em Portugal... mas um dia, quem sabe, eu irei. Ontem estavamos, meu marido e eu, conversando sobre os lugares que eu gostaria de conhecer e ele a falar dos pessegos e cerejas, que eu amo, acho um pouco de maldade, rsrsrs faz somente que eu fique com a boca cheia d'água. Mas um dia eu me vingo, faço ele me levar a todos os lugares de que fala rsrs. Beijinhos e lembranças a familia.

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  15. Estas histórias reais das tuas vivências, são muito enriquecedoras. Gosto muito de te ler.
    Bj,
    Manuela

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  16. Olá Luís. Um belo texto bem real que nos escreve aqui.Muitas histórias destas se viam em alguns lugares,pois a vida não era fácil.E não será só agora,o que penso é que as coisas já devia estar melhor partilhadas,e não só para alguns.
    Beijo e boa semana
    Lisa

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  17. Muito obrigado pela partilha de tão bela história; adoro ler estas histórias antigas.

    ABRIL

    O MEU MÊS

    19-Abril - nascia uma menina, hoje Mulher, Avó...mas essa menina anda muito triste, com muitos picos na alma - tal como diz o poema "Lamento" que fiz ontem, num momento de muita solidão e tristeza - ver no blog "Deabrilemdiante".

    19-Abril quero sempre a minha flor - Tulipas, é precisamente a época delas e já vi um raminho pequenino muito querido que vou oferecer a mim mesma.

    Beijos, poesia e flores.

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  18. Era uma vida dura e muito preenchida e se calhar, muito mais valorizada, do que a que temos hoje...com todas as mordomias e ainda nos queixamos.
    Vou ser repetitiva: adoro as tuas histórias.
    Beijo e uma boa semana
    Graça

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  19. O saber de bem saber contar uma história...
    obrigada pela partilha.
    Uma excelente semana
    Bjs
    Chris

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  20. Também me interesso (e escrevo) sobre figuras da minha terra - grandes e pequenas.
    Para mim têm o mesmo valor.

    Um abraço

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  21. Viajei com a ti Camila até o mercado,vendi, voltei, fui para a lida no campo... E amei, que conto gostoso de se ler e apreciar, pois sua descrição de tudo é tão perfeita.

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  22. Olá, boa noite, amigo!
    Passei para agradecer sua visita e comentário! Fico feliz por me acompanhar nesta aventura e voltarei com mais tempo para ler suas histórias, cativantes, por certo, a avaliar pela que hoje nos propõe.
    Um abraço

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  23. Histórias tão reais de um passado recente por aqui na Nazaré tantas tias Camila por cá habitaram nesse corre corre diário de vendas de geria a casa os filhos, muitas estão velhinhas e ainda contam sobre essas andanças
    beijinhos

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  24. Interessante e cativante a historia de Camila...um forte abraço e um belo final de semana pra ti amigo..

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  25. Caro amigo,eu pensei que estivesse em viagem por isso deixei de aparecer,perdoi-me; bom eu tinha dito que faria um selo e ofereceria a ti, lembra? rs rs, bom tai ai....rs r s r s; tudo bem, entendo.
    Te desejo umas lindas e dos seus sonhos, felizes... com todos em alegria infindas. bjs em todos
    * poderia vir ao brasil. aqui ainda ta quentinho e poderia curtir umas praias... qwuem sabe na proxima.

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  26. Maravilhosa narrativa, Luís.

    e tudo a passar-se aqui tão perto!
    Só que nesse tempo devia eu ainda andar pelos lados de Viseu ou do Porto ou de Lamego, quem sabe?

    Um abraço
    António

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  27. Lembro-me bem da Ti Camila e da sua burra e essa lembrança deixa-me preocupado...significa que o tempo continua a sua marcha e eu estou a ficar cada vez menos "jovem"...

    Um abraço

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