sexta-feira, 9 de abril de 2010

O tio Carnide

Posted by PicasaA picota (agro-museu Dona Julinha Ortigosa)


As madrugadas eram frias pois a geada ainda brilhava nas plantas adormecidas. Aquela aragem cortava-nos o rosto e as mãos. Era o mês de Março. De quando em vez, o Sol brilhava por umas horas, mas logo a seguir vinha uma saraivada de chuva, granizo e uma ventania que parecia levar tudo na frente.

- Se não parecesse mal, enfiava as mãos nos bolsos, dizia o tio Carnide. Nestes dias passava pela sua adega e bebia um copito de aguardente, em jejum - era o mata-bicho.
Depois, ia para a cozinha e comia uma malga de sopa com os filhos.


O tio Carnide era o irmão mais velho da minha Mãe, por isso o identifico assim.
Nas outras histórias apenas aparece o indicativo = Ti =, que é uma forma muito antiga de nos referirmos a alguém " de idade madura"

Coitado, como ele sofria com o frio. Lembro-me de olhar para aquele rosto magro, com uns olhos vivos muito pequeninos e as orelhas a desfazerem-se com as frieiras e o frio. Parecia que se arrancasse todas as escamas ficava sem orelhas.


Seguiam para o campo, trabalhar todo o dia e trocando tempo uns com os outros. Hoje vinham trabalhar para o tio e nos dias seguintes, o tio ia trabalhar para os outros pagando esse tempo.
Nunca falhavam nos dias combinados. Aqui aprenderam a respeitar os compromissos e a palavra dada, sempre com o maior respeito

-Eh, rapaziada vamos lá a isto, que o frio já passa, e esfregando com força uma mão na outra, agarrava o cabo da enxada e começava a cavar a terra à volta das videiras.
- O diacho da terra está tesa ....diziam alguns dos rapazes mais novos para o provocar.

O tio Carnide sempre com aquele sorriso de paz respondia:
- É o gelo que se entranhou neste barro, mas olhem que assim a bicharada que infesta a vinha também morre, se Deus quiser.
Ainda que tivesse entendido a maldade da conversa respondia por outra linha e não dava ocasião para outro tipo de conversa maldosa.
O tio Carnide era muito religioso. Cumpridor dos mandamentos de Deus e da Santa Igreja.
Nunca lhe ouvimos um palavrão nem mesmo aqueles termos muito usados na gíria popular.

Certo Domingo, depois da Missa, chamou o filho mais velho, o Adelino e disse-lhe:
- Até que a mãe faça o almoço, nós vamos lá acima ao Vale regar o milho e o feijão.
Ali, naquele Vale,  a água escorre em fiosinhos de todas as barreiras laterais.


Os mais antigos, fizeram pequenos tanques cavados na terra, para onde encaminhavam as águas nascidas por ali perto. Ainda hoje existem pequenas poças ou tanques que vão juntando essa água.


Depois, a um canto, construíam um estrado de madeira, para poder tirar a água para regar a horta, dividindo a distância entre a água e o terreno circundante.

Muitas manhãs, estavam ali a tirar água a cabaço ou então com a "picota".
A picota era constituída por um "esteio" de madeira terminando na parte superior com uma abertura em V, onde era encaixada uma vara de pinheiro fixa por um eixo, como se fosse uma balança.
No extremo que tocava na terra, era atada uma pedra para contrapeso e no outro extremo e que ficava para cima era pendurada outra vara mais fina com um balde na ponta.

Um homem em cima do andaime puxava a vara com o balde para dentro do poço enchendo-o, e logo a seguir, fazia o inverso, puxando para cima, até agarrar o balde que despejava num tabuleiro que corria directamente para a terra..
O contrapeso, ajudava a dividir a força quando o balde vinha cheio de água.

Nesse Domingo as coisas não lhe correram bem. O Adelino, caiu para dentro da água com todo o andaime por três vezes.
Da primeira vez repararam o que puderam e voltaram a tirar água, mas foi coisa de pouco tempo pois  voltou tudo a cair.
Tentaram reconstruir ainda uma terceira vez e o resultado foi o mesmo.

Então o tio Carnide voltou-se para o filho e disse-lhe:
- Vamos embora para casa !  O Domingo deve ser respeitado como dia de descanso e dia do Senhor.
O tio encarou todos aqueles desaires, como um aviso divino. 

Parece que nunca ninguém ficou rico, com o trabalho feito em dias santos.
A Partir desse dia nunca mais exigiu trabalho feito aos Domingos.

Contava-se que o tio Carnide, tinha uma memória prodigiosa. Onde pusesse as mãos, fazia arte.
Apareceram cá as duas primeiras bicicletas.
Uma era a do Senhor Pereira. Pessoa abastada, com uma fábrica de adubos. 
A outra era a dos Barbeiros. Famílias também de muitas "posses". 


Quando viu pela primeira vez uma bicicleta  ficou parado a estudar a máquina e o funcionamento.
Nem pensar em ter uma máquina daquelas  na sua vida....pensava ele.
Então passava noites a imaginar para ver se conseguia construir alguma coisa parecida. Era muito jovem ainda e com muita imaginação.

Com uma serra cortou um pinheiro em dois cortes simétricos, de onde saíram as rodas.
Depois, calculou o centro de cada roda e com um trado, furou-as, de modo a encaixar-lhes um eixo.


Arranjou um quadro e um guiador. Faltavam-lhe os pedais e a corrente que ele não conseguiu fazer nas suas poucas horas de lazer.
Então pegava na "traquitana" e levava-a até ao cimo das ladeiras. Sentava-se e guiava enquanto se deixava deslizar pela encosta num êxtase de pura felicidade. 

A sua alegria nestes momentos era indescritível. Todos os rapazes da aldeia seguiam as suas habilidades sempre com esperança de puderem também dar uma volta.

Não sei como chegou às sua mãos um harmónico, nem que tipo de instrumento era. Sempre pensei que seria um tipo de concertina e que ele habilidosamente lhe descobriu os sons.
Então, era vê-lo a animar todos os bailarícos,  nas desfolhadas ou outras festas cá na aldeia.
Corriam todas as casas onde pudessem conviver com alegria saudável.

Conta-se também, que um dia, vinha ele lá dos lados da Lameira, que deve distar uns cinco quilometros da sua casa. Andou a tocar por lá, a convite de alguns amigos que ainda hoje o recordam com muito respeito e saudade


O José Jorge e toda a Família. Aquilo é que eram amigos....!

Era noite cerrada, e nesse tempo também havia malfeitores, escondidos em cruzamentos e outras matas fechadas onde apenas se ouvia o sibilar do vento por entre os ramos dos pinheiros ou a corrida de algum coelho que se assustava à sua passagem.

Nessa noite apenas se guiava pelas estrelas e pelas clareiras por onde costumava passar durante o dia. O rapaz estava com um pressentimento ou estaria mesmo com medo...?

Já teria percorrido quase metade do caminho, agarrando sempre muito bem o harmónico, quando avistou um jumentinho por onde ele deveria passar. 

Mas que belo animal.
Mansinho como poucos que tenho visto....! Reparou o tio, que decidiu de seguida: !
Vou montar nele e depressa chego a casa. 

Assim pensou e assim fez. Nem se preocupou com mais nada. 
Chegando a casa deixá-lo-ia partir  e o animal irá procurar o dono.

Logo que se acomodou no dorso do burro, aquele desandou numa corrida louca que o tio Carnide nem se lembra por onde passou nem quanto tempo durou aquela viagem.

O burro parece que voava por entre os arbustos  e valados fundos . 
Havia uma ligação do seu corpo ao animal  que não podia saltar nem sair daquele lugar.

Contava o tio Carnide que de repente o burro parou perto de um silvado enorme e medonho. 
Deu um pulo mais forte, diferente dos anteriores, fincando-se nas patas dianteiras, atirando com o tio e o harmónico para dentro das silvas. 


Depois, o jumentinho, voltou-se e disse-lhe:
- "quem vai ....vai... e quem está.... está....Nunca mais te metas com quem tu não sabes....nem conheces..."

O tio levantou-se sempre agarrado ao seu harmónico e procurou o caminho para casa.
Ele, nem queria acreditar no que lhe aconteceu.

Já tinha ouvido contar algumas destas histórias, mas pensava com os seu botões que isso eram mesmo histórias.

Deitou-se, e adormeceu de cansaço. 

No dia seguinte, bem cedo, olhou-se com muito cuidado a pensar:
Devo estar todo amassado e cheio de arranhões das silvas.
Curiosamente não tinha um único vermelhão nas mãos ou na cara.

As suas mãos continuavam limpas sem picos nem outras marcas.
Logo volto lá acima para me certificar ....vou, vou...!

Não sei se ele chegou a confirmar .
Lá ficava sempre a história com aquela lição de moral:
....Quem vai...vai...
....Quem está ..está...
Este tio nasceu em 1905 e morreu com cerca de 90 anos. Era um homem de um trato muito sociável e de uma bondade sem limites.
Na aldeia todos o respeitavam e pediam a sua colaboração nas situações mais difíceis.
luiscoelho

30 comentários:

  1. " DEIXE QUE DEUS FALE AO SEU CORAÇÃO,
    PARA QUE VOCÊ SAIBA O QUE REALMENTE
    DEVE FAZER EM SUA VIDA!"

    ( Pe. FÁBIO DE MELO)


    Feliz FDS.......Beijos meus!!

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  2. LINDA HISTÓRIA, PASSOAS ASSIM DEIXAM LEGADO, UM FIM DE SEMANA DE PAZ, ABRAÇOS.

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  3. Há histórias muito interessantes,
    como esta que você inseriu.
    Desejo-lhe um bom fim de semana.
    Beijo/Irene

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  4. Que tempos lindos...de palavra, de honradez, de devoção sincera.
    Obga. pela sua amável visita e comentário.
    Que o Divino Espírito Santo sopre em todos nós viventes neste Mundo, que cada vez mais se está a tornar tão cruel e difícil para muitos.
    É cada vez mais difícil mantermos a Fé acesa dentro de nós.
    Forte abraço
    Santo fim de semana
    Fiquemos com ELE.
    Mer

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  5. De volta às memórias, hem, rapaz?!
    Já te tinha dito que gosto muito das tuas estórias? Já? Então digo outra vez...

    Abraço
    João

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  6. Oi meu amigo, bom dia, aqui são 08:32h!
    Senti o cheirinho do campo, algo que está latente em mim.
    Aguçaste minhas recordações do interior lendo sobre teu tio.
    Gosto de tudo isto!
    Meu abraço fraterno, meu apreço.

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  7. Olá Luís!
    Bonita forma de recordar e prestar homenagem ao tio Carnide.
    Eu, nascido no campo, quando vi esta picota também recuei no tempo, e recordei muitas outras pessoas e a vida de então, onde também entrava a dita, e donde saía a água para regar os feijões e as couves, e o resto.
    Está lindamente contada, e dá para "ver" o tio Carnide

    Um abraço.
    Vitor

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  8. Adorei a história do tio Carnide.
    Eu , nascido no campo, numa aldeia sem luz, sem água potável e sem caminho para carros, tínhamos nos mais velhos os exemplos de vida e rectidão. Eram homens de coluna vertebral, daqueles que partiam, mas não vergavam. Eram exemplos de valor e reserva moral.
    Tenho saudades desses tempos em que os VELHOS eram respeitados.
    Súde e um fim de semana de muita luz.

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  9. Acho maravilhoso essas pessoas de mais idade, as histórias que vão guardando e contando a sua sabedoria ganha pelos anos, como devíamos acarinhar e aprender com os nossos idosos
    beijinhos

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  10. Meu bom amigo, tudo isto que narra na sua história do tio Carnide eu conheço, não seu tio mas histórias completamente idênticas. Contadas e vividas pela minha mãe e pai, que nasceram em 1909, acredite que eu ainda hoje as vivo como se elas fossem minha.
    Adoro tudo que nos conta neste maravilhoso espaço, beijinhos de luz e um resto de fim de semana maravilhoso.

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  11. Que belo retrato de um homem às direitas, como já não se fazem hoje em dia!
    Longe vão os tempos em que palavra dada era palavra honrada, não eram precisos contratos, trabalho era pago com trabalho.

    Deliciosa a tua história do tio Carnide, uma figura que merece ser relembrada.

    Beijinhos

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  12. Fantástica esta postagem.
    Direitinho, é sempre bom visitar-te.

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  13. O tempo não apaga de nossa memória as boas coisas do passado onde a rudeza de vida era vivida com empenho e dedicação nobre perante tudo aquilo que surgia na vida de uma pessoa.

    Aqui, eis uma bela história de vida que marca bem um tempo dos tempos outrora.

    Recordar é viver e, a recordação é como se recuar-mos no tempo em que o salutar viver era prova concreta.

    Um bom post que deixa no ar uma boa homenagem a gente de outros tempos.

    Cumprimentos e bom Domingo.

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  14. Que texto maravilhoso. Admiro a forma com que manuseia a escrita. As palavras são exteriorizadas de forma perfeita. Nada como mergulhar nessas memorias.

    Estava com saudades de vir aqui. Perdoe-me a ausência. Não estava nem mesmo com tempo para postar.

    Meu carinho e respeito.

    Jesus te abençõe!

    bjos ternos.

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  15. São ótimas estas histórias de família!
    Um abraço, bom domingo

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  16. Amigo, bom dia,

    Vim agradecer a visita, as palavrinhas deixadas lá. Gosto dos teus comentários são sempre muito pertinentes. Obrigada por seua presença. Muito bom poder compartilhar nosso sentir com pessoas especiais assim.

    É um prazer sempre estar aqui.Beber dessa fonte, aprendo muito contigo.

    Abraço

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  17. Sempre bom passear nas memorias,,,relembrar,,rebuscar o que já se foi...abraços amigo e uma bela semana pra ti.

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  18. Estimado amigo, sobre a máquina de costura, quero te dizer que aos 14 anos de idade, trabalhei em São Paulo, numa fábnrica de máquina de costura chamada LEONAM. (MANOEL, invertido.
    Por sinal, seus proprietários eram portugueses.
    Minha mãe chegou a possuir uma máuina nos anos 60, parecida com a da tua foto.
    Abraços.

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  19. Gosto sempre das tuas histórias...Alguns termos que falas aqui aprendi a conhecer na aldeia dos meus sogros, quando lá íamos de férias... fêz-me saudades e tanta coisa me veio à lembrança.
    Um beijo e boa semana.
    Graça

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  20. Ahahahahaha...lembro-me bem dessas estórias de lobisomens transformados num qualquer animal ao sabor da imaginação popular.Conhecia essa do burro que lançou a carga no silvado; só não sabia quem tinha ousado montar o jumento; a mim contaram-me que tinha sido um carpinteiro.Normalmente estas estórias aconteciam sempre depois das vindimas, quando iam provar o vinho novo; era um copo para provar, mais outro para confirmar a prova, mais outro para a viagem...e no final até as sombras do caminho eram "coisas do outro mundo" que andavam a apoquentar as almas.

    Continua a recordar-nos essas estórias de vida de outros tempos
    Um abraço

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  21. Continuo a deliciar-me com as suas maravillhosas estórias, que me remetem aos tempos da minha infância e adolescência, na terra fria transmontana.
    Retive: a torna das jeiras; a sacha das vinhas, a picota [lá é "a raposa"], o Domingo era dia santo e respeitado, as bicicletas de madeira de pinho... enfim, através da estória do tio Carnide, mais uma vez revivi tempos felizes. Obrigado.

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  22. Que coisa mais linda!Saio daqui leve!Leitura maravilhosa!abraços,chica

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  23. Um forte abraço pra ti amigo pra desejar uma bela semana de paz.

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  24. Uma história de vida linda e intensa,um personagem ,que mesmo desencarnado,habita até hoje,nessa comunidade!

    bela narrativa!

    viva la vida

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  25. Um texto muito interessante e como sempre muito bem escrito.
    Vim aqui para também dizer ao meu amigo, que a Quinta das Lágrimas, hoje hotel, localiza-se em Coimbra (ao fundo da rua paralela ao Portugal dos pequeninos) e tem essas lendas dos amores de Pedro e Inês.
    Um abraço,
    Manuela

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  26. Gostei muito de conhecer o tio Carnide. Ele é uma das figuras tradicionais do nosso país, cheio de estórias que sabem bem recodar.
    Beijinhos
    Lourdes

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  27. Olá, eu estou com dificuldade em
    enviar omentários, escrevo e depois
    não seguem, outros seguem, é uma
    confusão...perco imenso tempo e não
    cumpro como gostava.Só tenho que
    pedir desculpa.Obrigada pelas suas
    visitas e as sempre amáveis palavras.Bj./Irene

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  28. Luís

    eu quando venho para cá

    trago sempre o banquinho de ouvir contos!

    obrigada pelas suas histórias!

    um abraço

    Manuela

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  29. olá amigo, muito obrigada pelas
    suas palavras acerca do dia mundial
    do beijo. Eu tenho uma máquina de
    costura(Singer)do estilo da que
    tem aqui no seu blogue que era de
    m/sogra, são realmente uma peça
    que nos recorda o passado de muitas
    mulheres que tinham que fazer a sua
    própria roupa e dos filhos.
    Beijinhos para si e tenha um bom dia/Irene

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  30. Como gostei desse recorte em suas lembranças. Eu, também, tenho lembranças maravilhosas da Fazenda onde passei todas as minhas férias escolares - dezembro a março e julho. Adorei a história do Jumento,recordou - me algumas, bem semelhantes, que meu tio, apoiado pelos colonos, contava para nós, um grupo de crianças e adolescentes barulhentose cheios de alegria, mas sem nenhuma experiência da vida no campo, pois todos nós - primos e irmãos - eramos "bichinhos da cidade" como nos chamava Vitorino, o colono escalado para nos acompanhar. Vitorino era gente da melhor qualidade e muito amado por todos nós. Perdão...Tenho um defeito incrível, me empolgo com tudo que gosto e saio a escrever, ou falar sem parar. Mas, adorei seu tio Carnide.

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