terça-feira, 1 de maio de 2012

Abril Liberdade




O mês de Abril era o mês das sementeiras. A vida na aldeia corria na azáfama da agricultura, único meio de sobrevivência das gentes simples do campo.

Desta vez a notícia, no rancho das mondadeiras, era o Tó. Tinha vindo passar férias a casa dos pais e acompanhava-os nos trabalhos do campo. Passava os dias colado à rabiça da charrua, atrás das vaquinhas castanhas.


Tinha sido mobilizado para a guerra na Guiné, já fazia mais de um ano. O rapaz agora vinha magro e seco, com uma cor diferente da que todos lhe conheciam. 


Nesta data, entre 1960 e 1974, o serviço militar era obrigatório para todos os rapazes com 20 anos de idade ou inferior se quisessem alistar-se voluntariamente. 


Aqui na nossa aldeia não havia família que não tivesse tido um filho em África, mas o pior foram as duas mortes em combate. Ambas em Angola. Morreram pela Pátria, diziam as pessoas com medo dos polícias à paisana.
Primeiro o Domingos Mestre e depois o Joaquim Repolho.


A recruta dos jovens consistia num treino intensivo, durante três meses,  para lhes aumentar a resistência. 
Seguiam-se outros três meses de especialidade. Uns eram atiradores, outros especialistas em transmissões, condutores, serralheiros, mecânicos, electricistas, cozinheiros, enfermeiros, médicos e todas as outras profissões de modo que a Companhia  se pudesse bastar.


  No final do primeiro ano eram mobilizados e enviados para a ex-colónias portuguesas Guiné, Angola, Moçambique, Timor e São Tomé e Príncipe. Países em luta pela sua independência.

O Tó dava-se bem com todos. Era uma pessoa popular. 
Como os demais passou pelos treinos militares. Deram-lhe a especialidade de artilharia em Queluz e de minas e armadilhas em Tancos.
Não escapou à sorte e lá seguiu no final do primeiro ano, para       a Guiné Bissau.


Com as armas de artilharia podiam apontá-las para um alvo fixo ou móvel em defesa ou em ataque.
Com as minas e armadilhas a situação era mais perigosa. Estes engenhos, pequenos em tamanho, eram colocados em lugares de passagem e eram autenticas ratoeiras para pessoas ou animais.


Pisar uma mina era sinal de morte certa ou de ficar decepado de uma perna, com rosto desfigurado ou parcialmente destruído. 
Hoje existem muitos soldados marcados pela violência destes engenhos explosivos.


Um dia receberam a notícia da mobilização. Ordem de Serviço do dia (.../...). Número, nome, posto e companhia mobilizado para...data do embarque...
Em cada um existia a esperança de poder escapar da mobilização.
Os homens não choram. Devem ser fortes e aceitar a sorte.

Nesse fim de semana foi a casa visitar os pais e deu-lhes a notícia. 
Não escolheu as palavras. Foi directo:
- Fui mobilizado e vou para a Guiné no final do mês de Dezembro. Será depois do dia de Natal.

A mãe rompeu num choro que parecia que lhe arrancavam o coração pela boca. Conhecia o sabor da partida. Sabia o que era sofrer a ausência dos filhos levados para a guerra.
O mais velho esteve na Guiné três anos. O seguinte foi mobilizado para Moçambique outros três e agora este irá também para a guerra.

- A mãe só conhece os filhos quando nascem. Depois perde-lhes o direito. O estado é o dono. Levam-lhes tudo...fazem-nos carne para canhão... dizem-nos que vão defender a Pátria, mas a nossa pátria é aqui onde nascemos e vivêmos...

O pai em silêncio olhava o filho, enquanto procurava dar alento à mulher, dizendo-lhe:
- Vá lá sossega. O Tó há-de voltar como os irmãos. Assim nesse pranto estás a fazer mal a ti e a ele também. Tens de arranjar coragem e forças para o ajudar.

Sentados à volta da fogueira conseguiam ouvir o silêncio que agora os possuía a todos. 
As brasas perderam o brilho e ninguém fez um gesto para as reacender. A esperança e os sonhos pareciam que se apagavam como as chamas da fogueira.

- Vou deitar-me, disse a mãe.
O Tó ajudou-a a levantar-se e o pai segui-a para o quarto.
Depois sozinho, deu um jeito à fogueira, retirando os cavacos para um lado e as brasas para o outro. Seguidamente dirigiu-se para o seu quarto .   

Estava muito excitado e sem sono. Ouvia ainda o choro da mãe. Compreendia a sua dor, mas nada lhe podia fazer. 
Ela procurava abafar tudo na escuridão da noite. Parecia-lhe que os santos da sua devoção a tinham abandonado.
O Tó arrumou as suas coisas na mala e depois do Natal partiu com os outros camaradas no Paquete Uige rumo à Guiné.


II


Agora, passado tanto tempo, voltou para descansar em casa. Foi nesta data que aconteceu o 25 de Abril.
A guerra tinha-o debilitado fisicamente. A fome e o calor tornaram-se grandes inimigos e os mosquitos que transmitem o paludismo faziam o resto.

Hoje recorda o dia 24 de Abril de 1974.
Encontrou à venda o livro Portugal e o Futuro. Sabia que estava proibido e correu a comprá-lo. À noite deitou-se a lê-lo procurando entender o pensamento do seu autor - General Spínola. 

Adormeceu e voltou a acordar cerca das duas horas da manhã. Instintivamente ligou o transístor, pequeno rádio de pilhas. 
As notícias ou a música ajudálo-iam a retomar o sono, mas aquilo que ouviu acordou-o completamente. O sono desapareceu.

Sentou-se na cama e com o rádio entre as mãos procurava ansiosamente esclarecer-se daquele comunicado constante.... Sintonizava outros postos para confirmar  se o que acabou de ouvir era verdade...

- O Estado Maior, comando geral das forças armadas, recomenda à população em geral que devem manter-se em casa. Toda a situação está controlada e a todo o momento daremos mais notícias.
Esta foi a mensagem que gravou.  

Depois ouvia-se a canção "Grândola Vila Morena" e outras que
até àquele momento também estavam proíbidas.
Não sabia o que fazer nem como obter mais notícias desta revolução que agora já começavam a chamar - revolução dos cravos.

Aqui na Aldeia havia poucas casas com TV e nem todas ainda tinham um rádio. Quando falavam de política era a medo. Sabiam que algumas pessoas eram informadores da polícia do estado. Ninguém devia falar mal de Marcelo Caetano ou de Américo Tomás que seguiam a política de Salazar.

A vida continuou nos campos e poucos ainda se atreviam a falar de uma revolução.
Silenciosamente substituíram alguns chefes das repartições públicas e noutras organizaram comissões de trabalhadores, mantendo toda a máquina do estado em funcionamento.


Durante alguns meses fizeram muitas mudanças. Umas mais perfeitas que outras.
Tomaram fábricas e bancos. Nacionalizaram empresas de transportes e ocuparam as grandes herdades do Alentejo.
Alguns conseguiram subir e instalar-se na política, fazendo-se respeitar, enchendo-se de luxos e guarda costas.


As férias encaminhavam-se para o fim. O Tó tinha de voltar para a Guiné sem saber mais pormenores nem qual seria a sua sorte. No dia da partida comprou os jornais do dia e levou-os para os seus camaradas que quisessem saber as últimas notícias do estado do País.

Os pretos, mais atrevidos, faziam-lhes frente. Alguns diziam:
- Vai lá para a tua terra. Isto aqui é nosso.
Chegaram mesmo a organizar manifestações com os meninos da escola, segurando cartazes e a pedir liberdade e independência... 

Em Maio já começavam a retirar algum armamento militar e pessoal para Bissau. Esvaziaram os aquartelamentos dispersos um pouco por todo o território e organizaram transportes aéreos e marítimos para o regresso de todo o exército para a Metrópole. Lisboa. 

Nos quartéis de origem era feito o espólio e a passagem à disponibilidade sem grandes cerimónias nem perdas de tempo. Eram uns a chegarem e outros a saírem.

Viva a Peluda! 
Gritavam a toda a força enquanto iam saindo, rumo à liberdade e à vida civil. Agora já não eram precisos .
Luíscoelho