quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Aniversário/David


 Feliz Aniversário
28/Abril/1984 - 28/Abril/2008
- 24 anos -

O meu primeiro dia aconteceu ao entardecer. Eram 16.45 horas de um Sábado.
A manhã acordou com muito sol e uma temperatura primaveril. Aqui na Aldeia andavam todos atarefados a semear os campos.

Tinham de começar cedo, ainda antes do Sol mostrar a sua força. Depois, com o calor e as moscas que povoavam o dorso e a frente dos animais, a tarefa tornava-se ainda mais penosa.

A Mãe já tinha as tuas roupinhas arrumadas numa mala. Estava no fim do tempo. Quarenta semanas de gravidez.
O pai foi ajudar o Avô no campo. Andava na sementeira na Lagoa d'Água. 

Naquele tempo ele ainda tinha as suas vaquinhas. Fazia todos os trabalhos com elas e elas era mansas e obedientes.
Às vezes dizia:
- As vaquinhas e o carro são o meu tractor e o meu ganha pão !

O pai pegou a rabiça da charrua porque o avô estava aflito com a "dor da ciática". Deitou-se no chão à sombra do carro de bois e pediu que o deixassem descansar.

A tia com os filhos também foram ajudar. O Olímpio, andava à frente das vaquinhas guiando-as nos regos abertos.
A Manuela ajudava a tia Leonilde a semear o milho e a Ilda brincava perto, onde o avô se tinha deitado procurando esquecer as dores.

Cerca das 11 horas da manhã a avó Virgínia foi lá ao terreno chamar-me a dizer para vir para casa. A Mamã já não estava a sentir-se muito bem. O saco das águas já tinha rebentado.

Mudei de roupa e de calçado e saímos em direcção ao Hospital de Leiria. Fomos naquele Renault 5 branco, já a cair de podre, mas que ainda aguentou mais uma década cá em casa.

O Médico que viu a Mamã disse que o melhor seria irmos para a Maternidade Dr Bissaia Barreto em Coimbra. Agora a situação era mais difícil. Lutávamos ambos contra o tempo para que nada de mal te acontecesse. 

Não conhecia muito de Coimbra e teria que ir e ser rápido. O Renault 5 portou-se bem.
Quando entramos, levaram a mamã para uma radiografia, para saberem a tua posição. Depois fizeram-lhe uma cesariana.

Os médicos abriram a barriga da mamã para te tirarem de lá. Já  estavas em perigo. 
Pesavas 3250gramas. Eras gordinho.
Depois deixaram-me ver-te e à mãe que estava cheia de dores.

Recordo o meu olhar para ti. Não sei se era de espanto se era de alegria. Tinhas uma cor avermelhada e eu não te podia pegar ao colo. Apenas podia olhar-te e agradecer a tua vida.

Os anos foram passando e nós mal nos lembramos das tuas traquinices. Procuramos dar-te liberdade para aprenderes e teres as tuas opções. Mostrásmos-te o caminho mas não te forçámos a segui-lo. Aconselhámos-te o melhor que soubemos e pudemos,sem nada te pedir em troca.


Quando foi preciso dar-te apoio estivemos presentes e nos momentos em que os teus erros foram mais graves não te voltámos as costas, pelo contrário procurámos que visses e reconhecesses os teus erros e com eles aprendesses mais uma lição de vida.

Não pretendemos que sejas perfeito, nem que sejas o melhor dos melhores. Queremos que sejas feliz e que aprendas a caminhar na vida com brio pessoal e responsabilidade.
Queremos orgulhar-nos de ti pelas tuas conquistas, pelo carinho que nos guardas, pelo trabalho que consegues fazer.

Gostaria de continuar esta carta.
Vamos escrevê-la todos. Tu serás o escritor principal, mas nós seremos também parte desse livro.

Nesta data, tão especial para ti e também para nós, pedimos a Deus que te ajude a ser sempre mais e melhor. Um homem realizado e um profissional competente e responsável.

Desejamos hoje e sempre que gozes de boa saúde do corpo e da ALMA que é uma parte escondida do nosso SER.
Mil beijinhos do Pai, da Mãe e da Mana e tambem da Avó Carminda.

Luíscoelho
(texto rectificado e corrigido em 2011/12/29)

domingo, 25 de dezembro de 2011

A Ti Catrina


.Era uma senhora baixa e magra, mas de uma alegria contagiante.
Andava assalariada na agricultura para quem lhe falasse.
Vivia com o marido (o ti Jerónimo) no lugar do Casal. Era uma casa grande e com um alpendre largo virado a Sul. 

Aquele alpendre parecia ter sido construído para arrecadar o Sol todos os dias .
Ao fundo e ao meio desse alpendre havia uma porta de madeira com um postigo ou janela mais pequena na parte superior.


Quando alguém lhes batia à porta eles abriam apenas esse postigo pequeno e era por aí que falavam para o exterior.
Só lhes abriam a porta depois de confirmarem que eram pessoas de bem e cheias de boas intenções.


A ti Catrina tinha filhos, mas eu não os conheci. Foram para outras terras, muito novos, e por lá ficaram, construindo as suas vidas.


Eram um casal muito pobre. Parece que quando eram novos, eram mais trabalhadores e mais cuidados com as suas roupas e a sua alimentação.


Recordo-os quando vinham aqui para casa trabalhar. Chegavam cedo  para beberem uma pinga de água-pé. Parecia terem mais sede do que fome ou vontade de trabalhar.


O pai que os conhecia bem, enchia-lhes um pipito de madeira com vinho, cerca de dois litros.
Depois dizia-lhes levem os sachos e vão andando  para o paúl. Comecem a sachar (mondar) o milho que eu já vou lá ter.


Quando o pai chegava com o carro de bois, já eles tinham bebido a pinga toda. O resto da manhã bebiam água. Havia ali perto a fonte do lago, onde corria água fresca todo o Verão.


O ti Jerónimo andava com as calças remendadas. Eram mais os remendos que o tecido original. Ela, a mulher, andava sempre descalça.


Na cabeça usava um chapéuzinho redondo e era lá que segurava as pontas do lenço florido que lhe guardava a cabeça.


A parte da manhã ainda trabalhavam com alguma animação, mas de tarde depois do almoço era muito mais difícil.


Ela começava a provocar o homem. Relembrava continuamente os seus erros, culpava-o por ter gasto todo o dinheiro que tinham e como se isso não bastasse chamava-lhe nomes feios:
- malandro, mentiroso, praticante, bêbado e ladrão muitas vezes....


O homem envergonhado nem lhe respondia, mas de quando em vez mandava uns "roncos" como que a avisá-la...Cala-te! Logo à noite nós falamos...e roncava mais duas ou três vezes...


Recordo uma manhã quando a mãe me mandou levar-lhe uma garrafa de vinho ali ao fundo do nosso quintal.


Quando me viu por perto, enterrou o sacho na terra para ele se segurar. Endireitou-se metendo a costa da mão junto ao quadril e respirou fundo...  depois sorriu-se para a garrafa...


De uma assentada leva-a à boca e chupa, chupa ...mas nada...Tira a garrafa da boca e olha melhor para ela ainda com a rolha no sítio e exclama:
...ora...pois... porrinha...assim não vale...


Nós estávamos perdidos com tanto de riso. 
Imaginem que a rolha não estava segura. Ela teria engolido tudo ou ter-se-ia engasgado a sério.Depois bebeu quase tudo de uma golfada...Fiquei convencido que, se não fosse por vergonha, tê-la-ido despejado de uma segunda vez. 


Por vezes ia sozinha cegar erva para as vaquinhas. Então cantava o tempo todo. Eram canções que se vendiam nas feiras. Fados tristes em quadras ou desgarradas que ela ia repetindo.
..."e a desgraçadinha...pobrezinha...assim ficou"


À noite vinham sempre aqui a casa. Queriam levar mais uma pinga para beberem antes de se deitarem. 


Alguns dias a mãe, com pena deles. dava-lhes um prato de sopa, pois na maior parte dos dias eles apenas bebiam  ou faziam migas de "cavalo cansado." migas de pão com açúcar e vinho.


Depois de sairem o portão grande de madeira, seguiam como um par de namorados, cantarolando algumas cantigas.


Por vezes, no escuro da noite e a coberto das árvores que ladeavam o caminho, ouviam outros passos e de imediato perguntavam:
- Quem vem lá....??? se caminham por Deus e por bem sigam em paz...


Os outros respondiam:
- Somos gente de bem...não fazemos mal... vamos de regresso a casa...


A ti Catrina tinha muito medo dos cruzamentos nos caminhos, onde diziam que apareciam coisas estranhas ou do outro mundo...


Hoje não resta nada daquela casa grande onde viveram e morreram.
Luíscoelho


Nota: o nome da senhora era Catarina, mas todos a chamavam assim - a ti Catrina.


(texto revisto e rectificado em 2012/Dezembro/16)








quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Pobres



Estávamos perto da festa de Natal. O Inverno  fustigava-nos de frio, de chuva e de vento. A humidade prendia-se ao nosso rosto e nem o vento que soprava continuamente a amenizava.

Vai ser mais uma noite para ficar à lareira depois do jantar. Com a fogueira aquecemos a casa e as crianças brincam até à hora de deitar na cama. 
Amanhã vai ser outro dia de trabalho.

Naquela tarde, parece que tinha anoitecido mais cedo. As luzes da cidade estavam todas acesas e, naquela rua, os enfeites de Natal davam mais vida e mais cor às pessoas e a todo o ambiente.

Em passos apressados e com o tempo todo contabilizado, dirigiu-se ao Supermercado.
A mulher, saía do emprego cerca de trinta minutos mais tarde. Costumavam encontrar-se  ali perto todos os dias.

Já perto do Supermercado aproximou-se um senhor bastante magro, barba por aparar e com um aspecto muito carente.
.
- Posso dar-lhe uma palavrinha..........? 
Perguntou entre tímido e também um pouco envergonhado. Parecia que ele próprio lutava para dizer alguma coisa...

- Diga lá, respondeu o outro desinteressadamente 

- Sabe, continuou o pobre homem, estou desempregado, sem dinheiro nem para comer... ...se me puder ajudar com alguma coisa.../... 
...Nem sei o que fazer da minha vida.../...

Os olhos daquele homem brilhavam mais que todas as luzes de Natal juntas. 
- Não posso. Respondeu o outro e continuou o seu caminho.

Entrou no Super e meteu no cesto iogurtes, fruta e leite, mas quando levantou os olhos viu na sua frente o mesmo homem que o abordou na rua.

Agora pareceu-lhe ainda mais magro.
Ele olhava fixamente para a banca da fruta ao mesmo tempo que contava as poucas moedas na outra mão semi-aberta...

Ficou intrigado. Poderia tê-lo ajudado com alguma coisa e dispensado alguns iogurtes e  fruta...afinal em casa têm outras coisas que aquele homem não tem.

Nem sei o que comprou aquele senhor. Foi muito pouco. Parou na caixa e depois desapareceu.

Nos dias seguintes aquela imagem começou a persegui-lo.
Seria Jesus para lhe pedir um pouco de partilha do que temos e somos...????

Aquela imagem acompanhou-o durante muito tempo. Ficou colada aos próprios olhos. 
Todos os dias passava  por ali procurando aquele rosto que nunca mais viu.

Hoje existem muitos pobres na nossa cidade.
Todos nos falam das suas necessidades, mas porque existem muitos falsos pedintes somos forçados a passar adiante e a ignorá-los.

Haverá outras formas de ajudar aqueles que mais precisam sem ser com as esmolas nas ruas.
Luíscoelho
(texto corrigido e alterado em 2011/Dez/14)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Domingos Domingues


PONTO~1.JPG
(foto google)




Domingos Domingues viviam perto da Igreja. Habitavam uma casinha velha, igual a muitas outras aqui da aldeia. Em frente existiam duas figueiras frondosas e retorcidas pela idade.

Viviam da agricultura e tinham dois filhos. O mais velho chamava-se Domingos e o mais novo David. Entre eles havia uma diferença de idade bastante grande, cerca de dez anos ou mais.

O primeiro era um rapaz alto e bem constituído. Tinha feito o exame da quarta classe e  foi aprender a profissão de carpinteiro.

Os pais, tinham muito orgulho naquele filho,  pelo seu porte físico e também pelas suas conversas. Sabia apresentar-se em qualquer lado sem medo e sempre com uma postura convidativa e cativante. 

Falava de muitas coisas que nem todos sabiam porque ele aproveitava os tempos livres para ler bons livros. 


Quando lhe pagavam algum serviço, pela reparação de móveis ou outras coisas que ele sabia fazer, guardava o dinheiro e metia as notas dentro de um livro da escola primária.

Um dia, a mãe, que sabia do seu segredo, desabafou para outras mulheres:
- O meu filho é rico....tem muito dinheiro escondido num livro...
...Assim até eu gostava de estudar...e ver tantas notas guardadas. Parecem novas....!


...Os meus pais, não me deixaram ir à escola. Apenas me deram esta enxada para cavar a terra. ...Só sei fazer isto...puxar terra para os meus pés... e, dizendo isto, a sua voz desaparecia com a emoção...

O Dominguitos namorava uma moça aqui da aldeia e ambos se entendiam. Entre eles havia respeito.

Um dia, foi às sortes com os outros rapazes da sua idade e foi alistado no exército. Os pais estavam ainda mais orgulhosos daquele filho. Com a farda vestida parecia-lhes mais alto e mais formoso.

- O meu Dominguitos...dizia a mãe, é a coisa melhor que eu tenho neste mundo. Só ele me faz  sentir bem. Nunca reclama de nada. Nem da roupa, nem da comida. 
...Às vezes, é ele que pega no ferro, e arranja as suas camisas e calças...

Nesses anos, rebentou a guerra em África e o Dominguitos também foi mobilizado. Era condutor auto e partiu com o contingente para Luanda.

O pai desfez-se em pedidos aqui e alem, onde podia chegar, para lhe desmobilizarem o filho. Não conseguiu. O rapaz embarcou com os outros militares com destino a Angola.

A ti Conceição andava desesperada. 
Chorava e lamentava a sorte do filho noite e dia. Chegou-se mais à Igreja e rogou a todos os Santinhos da sua devoção, que lhe guardassem o seu menino. 
...Meu rico filho..., meu rico filho...não há direito...


Todas as manhãs, corria descalça para a Igreja. Embrulhava-se num xaile preto e  assistia à missa sentada no chão. 


Por vezes as suas preces eram superiores às do Sacerdote e as suas lágrimas corriam apressadas num rosário de pai-nossos e avé-marias.  

O filho, vendo-a assim arrasada e sempre triste dizia-lhe: 
- Mãe, não te amargures mais. Nós vamos para Luanda que é uma cidade grande. Lá, não há guerra. Por favor não chores. Sabes que eu também fico triste por te ver assim....

- Ai meu rico filho... se eu pudesse "deitar fora" esta dor que tenho cá dentro do peito...era a mãe mais feliz do mundo...
...não me leves a mal...mas eu nem sei onde ando. Parece que entrei no inferno...

Depois do embarque do filho, ela quase deixou de comer. O homem ralhava com ela porque nem fazia os trabalhos em casa nem no campo. A ti Conceição andava seca. Ninguém a compreendia nem ela conseguia ouvir ninguém. 

No verão seguinte receberam a notícia de que o  Domingos tinha sido ferido numa emboscada e que foi evacuado para o Hospital Militar de Lisboa, para ser tratado.../.... 

Contaram-lhe a história assim:
"Seguiam todos numa coluna militar e foram surpreendidos pelo inimigo. Os nossos soldados  reagiram e mataram muitos, mas houve um preto que se escondeu atrás de uma árvore muito grande.

O Domingos pediu que não o matassem. 
- «Deixai-o ir...Não o matem...»
Mas esse mesmo preto, atirou certeiro e feriu-o gravemente, deixando-o às portas da morte". 

Esteve cerca de trinta dias no hospital militar, mas não resistiu aos ferimentos.
Faleceu no dia 26 de Julho de 1961, com vinte e três anos.
Foi o primeiro soldado desta freguesia a morrer em África e um dos primeiros a nível nacional. 

Recordo o seu funeral. 
Levaram a urna a casa dos pais, mas não a abriram. As pessoas aqui da terra e de outras freguesias vizinhas choravam com muita intensidade, mas os militares graduados mandaram-nos calar. 
- Silêncio...Silêncio...!
Disseram eles, num tom arrogante. Todos se calaram de uma só vez.

A Igreja, as ruas e o adro estavam completamente cheios de povo.
Respirava-se o medo da polícia. Todos estavam com medo da PIDE, que andava por ali misturada com o povo.


Ninguém arriscava dizer  mal do Estado Novo, nem da guerra que lhes roubava os filhos.
Olhavam-se nos olhos com dor e revolta.
Duas mães abraçadas à saída da Igreja diziam:
-Eles, os nossos filhos, não são nossos...são só emprestados. Depois seguem a vida deles...


Junto ao cemitério os soldados alinhados dispararam três salvas de fogo de espingarda em sua homenagem.

Os pais envelheceram. Ele deixou crescer a barba e a mulher sempre de preto já não ia tantas vezes à Igreja. Afinal os Santinhos não lhe atenderam os pedidos.
Agora queria ir para junto do seu menino....


A ti Conceição morreu pouco tempo depois, não conseguia comer. 
- A comida não me passa daqui para baixo...e apontava a garganta.


O pai Domingos Domingues também não resistiu. O seu coração dava sinais de cansaço. O desgosto matou-os antes do tempo.

Hoje o nome do Domingos consta de uma lista de soldados do Concelho de Leiria, que morreram em África.

A construção de um mural com o nome dos nossos heróis, foi a última homenagem que a Câmara de Leiria  e Governo Civil mandaram construir junto ao Jardim Luís de Camões no coração da nossa cidade.
Luíscoelho