terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Trocar tempo

Foto de António Almeida Nunes.
(foto de António Nunes FacebooK - 20/12/2013)


Era cedo ainda. A manhã acordava fria.
A mãe cuidava das coisas na cozinha sem fazer barulho. Não desejava por nada deste mundo que a canalha acordasse. Roubavam-lhe espaço para poder trabalhar e enchiam a casa de perguntas a que não sabia responder.
Sem saber como, eles apareceram. Descalços e desagasalhados vieram todos para a cozinha.

- Meninos ide dormir e deixai-me trabalhar.
Gostava tanto de poder estar mais tempo na caminha, sem ter de suportar este frio que me corta as mãos e o rosto...
-Oh mãe, agente quer ficar aqui ao pé de ti...assim…e aninharam-se todos três em cima de um banquito de madeira, colados à parede. Ela deixou de ter força para os enxotar.

- A nossa vida é dura, continuou a mãe. Tenho de deixar tudo pronto até à hora do pessoal chegar. Hoje temos um rancho de pessoas que vem pagar tempo. Vão sachar (mondar) o milho para a Lagoa d'Água.
Precisam de levar o farnel e um pouco de vinho e água. Não posso  perder tempo...
Os olhos dos garotos tornaram-se maiores e as perguntas vinham assim sem querer... "Pagar tempo"?
O clarão da fogueira iluminava a casa.

- Diz-nos lá o que é essa coisa de pagar tempo...?
Nunca ouvimos isso e o tempo é sempre o mesmo... Ontem, hoje ou amanhã. Nós não podemos pegar um pouco de tempo e dar-to para pagar o mesmo tempo...
- Mãe disse o mais velho, gostava muito de poder pagar-te o tempo que gastas connosco.
- Eu também,  eu também. Disseram os mais novos sem entender essa coisa de pagar tempo...

- Vocês lembram-se dos dias desta semana que fui trabalhar para outras pessoas. Hoje essas pessoas vêm retornar o tempo que eu trabalhei para elas. Não recebo nem pago. Fazemos apenas uma troca.
Algumas pessoas, hoje, vêm ganhar tempo. Depois terei de ir para elas outro dia pagar este tempo. Um dia vocês vão entender.- Há, pois...agente também vai trocar tempo...Não vai mãe?
- Quem sabe se vocês um dia poderão fazer o mesmo que nós. Tudo nesta vida se transforma.
A mãe quase nem olhava para eles. Continuava os seus trabalhos numa ordem que vinha do seu interior. O ritmo era intenso. Punha mais uma cavaca debaixo da panela ou via o tempero. Contava os talheres e os pratos para que não faltasse nada.

Depois começou a meter tudo, muito arrumado, dentro da poceira, cesto grande de vime.
No final parou e disse:
- Agora tenho de colocar aqui o tacho com as batatas e a carne guisada. As outras coisas vão no fim, por cima ou dos lados.
Sentados no banco os cachopos observavam tudo atentamente. Gostavam de fazer mais perguntas mas não queriam aborrecer a mãe.
- Nós também vamos ajudar. Vamos ganhar tempo...
Vocês já gastaram muito tempo com as nossas coisas, não foi?

Os olhos da mãe ficaram parados. Brilharam mais que o fogo da lareira, mas não disse nada. Olhou-os a todos com tanta ternura que não saiu uma só palavra.
Mais tarde ouviram-na comentar com o pai:
- Não sei onde é que estes garotos vão buscar estas coisas...parece-me que não são conversas da idade deles...

Que Deus guarde e proteja sempre os nossos meninos.
Luíscoelho

Dezembro/2013

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Barcelona

(Foto google)

Fomos convidados para ir passar uma semana a Barcelona. Partida a 25 de Abril e regresso a 01 de Maio.
Olhámos para o mapa e situámos a cidade na ponta noroeste de Espanha junto ao mar mediterrâneo na Região da Catalunha.  

Partimos num grupo de quarenta e oito pessoas desejosas de vencer mais de mil quilómetros para lá chegar e cheias de boa disposição e muita camaradagem. O autocarro saiu de Leiria às 02 horas e entrámos no hotel H2 em Sant Cugat às 19 horas no horário de Espanha.

A chuva foi uma inimiga que nos acompanhou durante quase toda a viagem e ainda durante os dias seguintes.
Começámos por um pequeno passeio a Sant Cugat. Pequena vila com alguns vestígios românicos, uma  igreja e um convento beneditino que merecem uma visita.

No dia seguinte fomos visitar Terragona, cidade medieval carregada de história. Visita guiada pelas ruas e principais monumentos. 
Visitámos também o Santuário de Montserrat, situado numa colina a mais de quatro mil metros de altitude. A chuva e o frio não nos deixaram saborear uma vista completa daquele local. Era dia de festa e havia muito movimento apesar do frio e da chuva intensa.  
Na tarde do mesmo dia visitámos as famosas Caves do vinho espumante Freixinete.

A próxima visita foi a Montblanc. 
Havia tendas no centro histórico e bastantes figurantes para as comemorações da fundação da vila. Festa medieval. 
A chuva transtornou as suas perspectivas e também a nossa visita. Completamente encharcados regressámos de autocarro ao hotel.

À noite fomos ao centro de Barcelona para ver o espetáculo da fonte luminosa. Em caminho visitámos Montjuik. O porto de pesca e o porto de recreio. Foi uma viagem panorâmica de Barcelona à noite.  
A guia local foi incansável para nos mostrar alguns dos locais de maior relevo turístico. Casa Milá e casa Batió

Ficámos ainda com duas tardes livres para visitarmos outros pontos de opção pessoal.  
Parte gótica da cidade e as suas avenidas e monumentos.
A imagem que me ficou gravada foi a de uma cidade com vida e movimento em todas as ruas. Havia uma massa humana que se cruzava nas praças e avenidas.  

O parque Gueell com as obras de António Gaudi.
A Igreja da Sagrada Família, a Catedral, a Igreja da Senhora do Mar, o Mercadinho, as Ramblas e tantas coisas que nos ficaram gravadas nos olhos e no coração pela beleza, grandeza e organização.

O saldo final é francamente positivo.

Ficaram muitas coisas por visitar e sobrou-nos o desejo de voltar com mais tempo.
Maio/2013
Luíscoelho

sexta-feira, 15 de março de 2013

A ti Canária



(foto google)

Tenho uma leve lembrança desta personagem. Vivia no extremo da Aldeia, numa encosta virada a nascente.  Subíamos do lado poente e só no cimo do monte é que começávamos a ver o telhado da sua casa. Era uma casinha simples e escondida na vegetação.
Poucas pessoas passavam por ali. 

Alguns metros antes da casa o caminho virava à direita em direcção aos pinhais e matas que pintavam de verde toda aquela zona inabitada e que se estendiam para Sul e para nascente até perder de vista.
Nas tardes quentes do Verão, quando o Sol se inclinava para o Oceano  havia tonalidades diferentes por toda aquela vasta área. As aves e as cigarras completavam este quadro em alegre e monótona sinfonia.
A Canária era casada com o Zé Sacristão. Homem forte e alto. Parecia descendente dos antigos ciclopes (gigantes gregos). Apesar de tudo era um homem trabalhador e muito prestável. Tinham uma filha e podiam viver em paz se não fosse o famoso néctar da uvas que se apoderava das suas capacidades de diálogo e de compreensão.
Conta-se que certo dia, depois da vindima, o Zé Sacristão foi ao lagar pisar as uvas em fermentação. Molhou os dedos no mosto e levou-os à boca para saborear.
- Que coisa boa...! Exclamou de satisfeito. Depois chamou a mulher e disse-lhe:
- Traz-me aí uma broa e uma tigela grande.
Ainda antes de começar a pisar as uvas, bebeu uns caldos de vinho em mosto com as migas da broa.
- Há!...Agora estou satisfeito. Então vamos ao trabalho. 
Foi pisando as uvas fazendo-as mergulhar no vinho que sempre as trazia para cima.
Quando terminou foi a correr lavar os pés e as pernas pois já lhe estava a doer a barriga. O mosto das uvas em fermentação começou "a dar a volta" nos intestinos. Depois ainda veio o pior... Nem de pé nem sentado...não tinha posição e corria com as calças na mão para se poder baixar constantemente. Passava muito tempo de  rabo no chão...era uma diarreia seguida.../...muitas cólicas...
- Ia morrendo. Dizia ele. Só via diabos à minha volta...ufa! Juro por Deus que nunca mais farei outra coisa igual. 

A mulher fez-lhe um caldo de arroz cozido para ele beber, mas  aquilo saía mais depressa do que ele bebia.

- Vai "home" come mais um caldinho...Se eu pudesse punha-te uma rolha no cu...dizia ela com malícia.
-  Cala-te...! Deixa-me! Ai que eu não posso mais! Gritava o pobre homem.

A Canária cantava todo o dia. Quando íamos com o carro de bois para aqueles lados, ouvíamos parte dos seus cantos. Eram tristes. Pareciam preces, talvez gemidos como quem chora. Seriam saudades do seu amor?
Andava sempre com as saias alteadas. Metia uma fita abaixo da cintura e depois puxava as saias para cima de modo a ficarem apenas pela altura dos joelhos. Assim não se sujava na terra.

No Inverno não havia trabalho. Ele oferecia-se para limpar as valas na ribeira do Paul. Fazia esses trabalhos como uma empreitada. Todos os dias por lá andava, descalço e com as calças arregaçadas acima dos joelhos.

Tinha uma pá estreita e era com ela que ia tirando a terra do fundo e dos lados do canal. Também trazia um balde de madeira onde guardava algumas enguias que ia encontrando.
O seu ritmo de trabalho era sempre o mesmo.
De quando em vez endireitava as costas e respirava mais fundo para aliviar as dores...

Um Sábado à noite o Patrão chamou-o para lhe darem a ceia. Encheram-lhe o prato com feijão cozido, pedaços de carne e bastante hortaliça. Ele devorou tudo tão depressa que todos ficaram pasmados. Não mastigava nada. Engolia quase tudo.


- Algum dia você engasga-se e depois é o cabo dos trabalhos, disse-lhe a dona da casa. Deve comer mais devagar e mastigar melhor. Pode um pedaço de carne ficar-lhe entalado na garganta. Cuidado!


- "Nã" se preocupe." “nã, há-de ser nada”

Se alguma vez isso acontecer eu carrego-lhe aqui com estes dois até passar tudo para baixo! E mostrou dois dedos grandes de uma das mãos..."vira-milho" é sempre a andar...e riu-se muito com a sua voz grossa e muito desconcertada.
Luíscoelho

sexta-feira, 1 de março de 2013

Marcações de terrenos

Na nossa aldeia as histórias aconteciam por tudo e por nada, mas  eram sempre acontecimentos importantes para todos.
Algumas coisas eram divertidas: as festas, os casamentos, a chegada dos emigrantes, a matança do porco etc.
Outras eram mais tristes: os doentes, os desentendimentos entre vizinhos, os funerais ou os acidentes

Havia também o trabalho comunitário:  arranjo dos caminhos públicos ou a reparação de alguma casa atingida pelo fogo ou derrocada.
Todas as pessoas eram moldadas por uma grande força de viver e lutar pela vida.
Em cada pessoa residia o sonho de um futuro melhor.

A palavra de um homem era como uma escritura. Todos cumpriam com o combinado entre todos. Eram as suas obrigações.  
Uma ou duas vezes por ano reuniam-se no adro da Igreja, depois da missa do Domingo e planeavam alguns trabalhos comunitários. Limpeza e arranjo dos caminhos.
No dia marcado juntavam-se todos e com as suas enxadas cortavam as silvas e outros arbustos que dificultavam a passagem. Tapavam os buracos e deixavam os caminhos transitáveis.

Eram pessoas simples, claras. Era assim porque era assim, e sempre foi assim. Não havia lugar para muitas perguntas.  
As sementeiras sempre foram feitas no tempo certo. Na Primavera.
As colheitas eram o resultado dos cuidados de cada agricultor ou da vontade de Deus. 

Quando faziam uma marcação de terrenos, porque se perderam os marcos ou porque surgiam dúvidas, juntavam todos os confinantes. Descobriam um marco e alinhavam o terreno com duas ou três canas altas até ao limite do terreno.  

Depois abriam uma cova e colocavam lá uma pedra grande no fundo e outra mais pequena em cima daquela de modo que ficasse à superfície.
Por último colocavam as testemunhas. Eram pequenas pedras que ficavam dos lados do marco principal.
Cada pedra pequena representava a direcção do outro terreno. Ninguém poderia mexer ou alterar a posição destas marcações.

Um dia dois agricultores levaram-se de razões por uma beira de terra. Cada um afirmava que era sua. Os ânimos estavam exaltados e um deles afirmou:
- Vou arrancar essas pedras. Esta beira de terra é do meu lado, pertence-me...
- Nem pense nisso, respondeu-lhe o outro. Este marco sempre aqui esteve. O senhor não pode mexer-lhe. Vou-me colocar em cima dele. Livre-se de levantar a enxada para o arrancar...

Percebendo as certezas do vizinho, saiu dali a resmungar e entre dentes disse:
- A cada um o que é seu - diz o povo e com razão...
- Nem dá-lo nem roubá-lo, acrescentou o outro, também convicto das suas razões.

Luíscoelho - Março 2013

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Obrigado


(foto google)

Quero dizer-vos obrigado
Com muita simplicidade
Sem ter nada combinado
Num gesto de liberdade

Escrevendo ainda procuro

Amigos com dignidade
Sabendo quanto é duro
Perdê-los por mera vaidade

As palavras que escrevo

Não são tudo quanto devo
Para todos em igualdade

E simplesmente obrigado

Por quanto me foi ensinado
Não será mais que a verdade
Luíscoelho

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

O ciclone de 19 de Janeiro de 2013 em Leiria





(foto Região de Leiria)

Muitas nuvens carregavam o céu escondendo as estrelas. O vento começou numa dança em ritmo crescente.
Que vendaval aí vem...pensaram todos ao mesmo tempo. Os sons tornavam-se medonhos, ameaçadores...
Trancaram as portas e janelas e sentaram-se todos à volta da fogueira que parecia não quebrar o frio. 
Os ventos entravam pela chaminé e espalhavam o fumo por toda a casa o que era ainda mais desagradável.

Entre todos crescia a esperança que nada de mal lhes acontecesse. O pai e a mãe estavam presentes e isso já ajudava os mais pequenos a estarem tranquilos.
O temporal não escolhe as pessoas. Ricos ou pobres, todos estão sujeitos à fúria dos ventos e da tempestade.
O pai estendeu o braço para os proteger, acarinhando-os. No seu olhar havia esperança. Já tinha passado por outras tormentas. Sabia que tudo iria passar deixando marcas um pouco por todo o lado.

A casa era simples. As paredes eram de pedra e os tectos de madeira. O olhar das crianças reflectia insegurança.  
Se os pais não estivessem com eles deixar-se-iam sufocar pelo medo constante e crescente.
 A ventania assobiava nas portas e janelas.
De repente ouviram outros sons. Eram as telhas da casa empurradas pelo vento a partir-se na calçada. As árvores  na mata, também iam caindo umas sobre as outras.
Muitas partiam-se pelo meio e outras eram arrancadas pela raiz.

- Não chorem...disse-lhes o pai em tom de segredo. Estas coisas merecem respeito, mas tudo vai passar. As forças da natureza são poderosas...não devemos desafiá-las...
- Vou lá fora procurar umas pedras grandes para colocar em cima das telhas do beirado. É preciso segurá-las com sacos de areia ou pedras para que não se soltem e se partam no chão.  
- E tu consegues fazer isso sozinho? Perguntou a mulher.  Vou ajudar-te!...Tu vais acertando o beirado e eu chego-te as pedras para as travar. Vós ficais aqui ao calor da fogueira mas não mexam no lume, disseram ambos, avisando os filhos...

A casa era baixa e algumas telhas já tinham caído. Outras balançavam ameaçando rolar para o chão.
Ele encostou uma escada e subiu compondo um lanço de telhas. A mulher levou algumas pedras que o marido distribuiu por cima do beirado para as segurar.
Depois de reparados os estragos maiores disse: 
- Faremos o resto amanhã... Agora não se vê e sem querer podemos cair.
Arrumou a escada e voltaram para junto dos filhos.

A mãe avivou a chama da fogueira para iluminar a casa e depois espreitou a panela da ceia.
- Vamos comer a nossa sopa...Está cozida...
Serviu os mais pequenos e depois os mais velhos. Ela e o marido seriam os últimos.  
Chega para todos... No fundo da panela cresce sempre mais uma concha de sopa. Deus não nos deixa ficar mal.

O pai partiu e distribuiu o pão.
Comeram em silêncio, mas podia ouvir-se o som das colheres raspando nos pratos...
Ninguém pediu mais. Todos tinham enganado a fome.
Podemos ficar aqui, à fogueira, mais um pouco. Depois iremos quentinhos para a cama.

Os mais novos, ouvindo o barulho do vento, foram perguntando:
- O que é o vento e de onde é que ele vem?
Porque é que ele faz tanto barulho agora...?  
-Pouco posso dizer para explicar o vento...disse-lhes o pai. Imaginem o mar com tanta água e tantas ondas, esse é o mundo dos peixes...
Nós vivemos num mundo atmosférico. É como um mar de ventos, com ondas e tempestades.
Os peixes não vivem sem água e nós não vivemos sem o ar... 
 Amanhã quando acordamos vamos ver as coisas que o vento tombou, partiu ou levou.  

Agora vamos apagar a fogueira e vamos todos para a cama. Está na hora de irmos dormir sem medo.
Luíscoelho