quinta-feira, 24 de julho de 2014

Saudade




(foto google)

Tenho Saudade
Saudade de um tempo de Primavera,
Dos dias grandes carregados de Sol
E das manhãs frescas que o orvalho fizera
Saudade dos passarinhos que cantavam ao desafio
E das tardes anoitecendo silenciosamente
Germinando um tempo mais quente e de Estio

Tenho saudade
Saudade do tempo que o tempo desfez
E dos serões e noites ao calor da lareira  
Dos sonhos e agruras que a vida nos fez
Saudade da voz que amor nos trazia
Enchendo-nos as mãos de esperança tardia
No brilho do tempo que no homem ardia

Tenho saudade
Saudade do tempo que o tempo levou
Emoções e gritos já gastos perdidos
Ecos do tempo que o amor alimentou
Saudade de alguma saudade interior esquecida,
Talvez a fome de uma dor não sofrida.
Tenho saudade, saudade.
Luíscoelho

Julho/2014  

domingo, 13 de julho de 2014

Segredos

O Paulo namorava com uma linda rapariga. 
Ela, além de ser muito bonita, era também desejada por todos os rapazes da aldeia.
Eram parentes em terceiro grau. O Paulo e ela gostavam de se tratar por primos. 
Os filhos dos irmãos do pai ou da mãe são primos direitos ou em primeiro grau.
Depois os filhos desses primos são primos em segundo grau e por último os filhos destes serão primos em terceiro grau. A escala da linhagem continua.

Além da sua formosura era também filha de uma das famílias mais ricas da terra. Possuidores de muitos pinhais, terras de cultivo e de grandes vinhas. 
A conquista não foi fácil.
Era preciso que os pais dela aceitassem o namoro.
O noivo deveria ser trabalhador e ter ainda outras qualidades de respeito e honestidade.

O tempo de namoro prolongou-se por mais de dois anos. Tempo suficiente para aprenderem a amar-se e a respeitar-se. Aprendiam também a conviver socialmente com as famílias de um lado e do outro. Não eram permitidas grandes familiaridades entre os noivos.
Os beijos não existiam com a facilidade com que hoje se troca um beijo como um cumprimento.

O Paulo foi para a tropa. Estava perto e sempre que podia vinha à aldeia ver a sua família e também a namorada. Nesse tempo já tinha uma bicicleta para fazer as viagens. Entendiam-se bem e havia respeito de ambos os lados. Assim que pôde pediu a moça em casamento e de imediato começaram a construção da sua casa.

O Paulo foi tentando a sorte. Cada dia procurava ir um pouco mais além. Aconteceram os beijos às escondidas. Rápidos e silenciosos. Depois aquelas mãos atrevidas subiram e desceram transportando desejo e algo mais.
Dois meses antes do casamento o Paulo conseguiu entrar em casa. Convenceu-a.
Depois da primeira vez tudo se tornou mais fácil. Gostava ele e gostava ela. Brincavam.
As noites eram o seu esconderijo e o silêncio revestiu-os de graciosidade e prazer.

Algum tempo depois começaram os enjoos. 
- Estou grávida, disse-lhe a medo.
- Trabalho feito já não mete cuidados, respondeu o Paulo. Já falta pouco tempo para o nosso casamento.
Vamos guardar este segredo só para nós e tu vais ter cuidado para que tudo corra bem até ao fim.
- Mas isto foi um pecado...Vou confessar-me. Não quero viver nesta dúvida e com este medo.
- Olha lá menina este é o nosso segredo, só nós dois é que sabemos e já é muito, se souberem três é demais.
Nem penses em  confessar ao Padre nem a ninguém das nossas vidas.

Vamos amar o nosso bebé e pedir a Deus que ele venha bem e com saúde. O resto tudo se esquece. Depois de casados ninguém te perguntará se foi antes ou depois nem se foi uma única vez ou se todos os dias havíamos de nos aperfeiçoar ainda mais.
Agora só devemos tratar do nosso casamento.

Como ainda eram parentes em terceiro grau o Senhor Prior exigiu um imposto para lhes autorizar o casamento. As leis canónicas não permitiam o casamento até ao terceiro grau. Se os noivos quisessem casar-se teriam de pagar uma espécie de multa. Seria maior quanto maior fosse o grau de parentesco.
Os mais penalizados seriam os primos direitos ou em primeiro grau e depois ia decrescendo conforme a categoria. Diziam que isto era para evitar consanguinidade. 

Os bebés nascidos de pessoas com graus de parentesco próximo poderiam ter graves problemas físicos ou mentais. 
Correu tudo como o previsto. O Paulo e a mulher estavam satisfeitos.
Oito meses depois do casamento nasceu um belo rapaz que os encheu de alegria.

O Paulo contou este episódio das suas vidas por duas ou três vezes e apenas no meio familiar. Sentia-se um herói.
Ela, ao contrário, ficava muito envergonhada e dizia-lhe abertamente que estas conversas não eram para  divulgar.
Segredos são segredos e devem ser guardados.
- Sabemos nós os dois e já foi muito...todos os outros serão demais... 
Luíscoelho
Julho/2014

sábado, 5 de julho de 2014

A Pedra



(foto google)

Era um penedo de granito grande e arredondado e estava colocado do lado direito do portão grande de madeira à saída do pátio. Tenho a certeza que usou muita imaginação e técnica para transportar aquela pedra até à entrada de casa. Deve pesar várias centenas de quilos.
Um dia, em conversa, explicou que aquele penedo servia para obrigar a roda do carro de bois a afastar-se da parede.
Para entrar e sair do pátio nem sempre se conseguia fazer a curva de modo que a roda não empancasse na parede. 

Mais tarde, quando já não conseguia trabalhar nos campos, vinha sentar-se ali em cima daquele penedo. Parecia ter criado uma relação de amizade com aquela pedra. Ali tinha mais liberdade de movimentos e pouco lhe incomodava ver desperdícios espalhados à sua volta. Não incomodava ninguém.
Aproveitava o tempo para fazer aquilo que gostava e que a sua imaginação lhe ia desenhando.

Um dia encontrou um molho de fitas plásticas coloridas e resistentes. Estas fitas são utilizadas para apertar materiais de construção - telha ou tijolo, mosaicos, etc. 
Primeiro fez com elas um tapete onde jogou com as cores formando riscas e quadrados simétricos. 
Depois descobriu que rasgando aquelas fitas, em tiras mais finas, elas ficavam mais maleáveis e era possível fazer outros trabalhos. Dando asas à sua imaginação construiu cestos e revestiu garrafas de vidro de todos os tamanhos e formas. 

Todas as manhãs, depois de tomar o café, ia até ao seu banco de pedra e começava a trabalhar as suas ideias. Dava gosto vê-lo torcendo as fitas em volta de uma garrafa ou escolhendo as cores de modo a dar a tudo um ar mais fino e colorido.
Alguns amigos vinham visitá-lo. Nessas horas parava os seus trabalhos. Gostava muito de conversar. A sua memória prodigiosa tinha presente os seus tempos de menino, de jovem e também de homem activo. 

O respeito era um dever sagrado. Nunca se deixou influenciar pela calúnia nem pelos boatos infundados. Fazia as suas leituras dos acontecimentos sempre com muita prudência e manteve-se lúcido até ao final dos seus dias. 
Mereceu o respeito e o carinho de todos quantos conviveram com ele e também puderam admirar os seus trabalhos.

Hoje, a rocha continua num canto do jardim. A recordação do avô habita aquele espaço assim como alguns dos seus trabalhos presentes por toda a casa.
Não se podem contar os dias em que parou os seus trabalhos para brincar com os netos nem quantos se deixou embalar nas suas brincadeiras durante as férias grandes do Verão. 

Um dia fomos encontrá-lo a construir um avião com folhas de cartolina. Usou toda a sua imaginação para construir sem cola nem outros materiais. As rodas são as tampas das garrafas de cerveja. Está proporcional no tamanho das asas ou do corpo central.
O avião colado aos seus dedos parecia que ia levantar voo para aterrar de seguida nas mãos dos netos que lhe prolongavam a vida e os sonhos. 
Os seus tempos foram difíceis, mas ensinaram-lhe muitas coisas e a sua inteligência protegeu-o do esquecimento. 
Julho/2014
Luíscoelho