sexta-feira, 20 de abril de 2012

A Última Páscoa

Os dias eram longos, longos demais e as noites internináveis. Tinhas adoecido gravemente já fazia quase um mês. 
Depois de uma estadia no Hospital de Santo André em Leiria, mandaram-te para casa ainda mais debilitado. Mal conseguias comer e passavas grande parte do tempo na cama.

Nos teus olhos transparecia sofrimento que escondias num sorriso de paciência.
Nem sabes quanto nos custava ver-te assim e sem poder ajudar-te. Pedíamos por favor para comeres duas colheres de sopa para te aquecer interiormente.
Depois os medicamentos. Eram tantos. Complicado, ajudar-te a tomá-los todos...

Veio a Pascoa e todos te visitaram ali no teu quarto e na tua cama.
Junto de ti tinhas uma caixa com dinheiro que foste distribuindo na mesma quantidade e igualdade pelos netos e bisnetos. Para ti eram todos iguais e todos mereciam esse teu gesto.  

Impressionante como te foste apagando silenciosamente.
Sentimos que era o fim .
Olhávamos impotentes sem que nada pudéssemos fazer para o evitar. Era o destino. 

Corria o ano de 2004. Cada dia mais fragilizado e aceitando o silêncio por companhia.
Dia 20 de Abril, perto da meia noite quebraste o silêncio com um grito que nos acordou.
Tinhas partido. Terminaram os teus dias e os teus sonhos.
Um rosto sereno de quem cumpriu a missão.

Agora sobra-nos o silêncio, a recordação de tantos dias de convívio, de tantas lutas e sacrifícios para que nada nos faltasse.
Sobra-nos o respeito que nos ensinaste e nos fez uma família.

Agora, lá onde moras, peço a Deus que te guarde e te trate bem como nos ensinaste a nós a amá-Lo e a cumprir os nossos deveres sociais, morais e humanos.
Silêncio e paz.
Luíscoelho

sábado, 7 de abril de 2012

A Ti Charuta





(foto google)


Passaram-se já muitos anos. Muitas coisas estavam adormecidas na poeira do tempo que teima em sepultá-las no esquecimento. Lentamente fui recordando a Ti Charuta. A casinha pequena onde viviam, lá em baixo no meio dos pinhais, a caminho do Paúl. 

Ao lado da casa, havia um carreiro por onde as pessoas caminhavam a pé e, logo a seguir, havia o caminho fundo de terra batida para os carros de bois. 
Do lado Sul desse caminho havia uma vedação de espinheiras que limitava a Quinta do Costa Pereira.
Cada Inverno, as chuvas arrastavam a areia do caminho, tornando-o ainda mais fundo e estreito. 

A pobreza e a resignação foram as sombras que agasalharam a família da Ti Charuta. 
Todos os dias víamos o fumo a sair pelas telhas do telhado. Ela tinha de fazer um caldinho para os filhos e o fogão era uma fogueira no canto da casa. 
Com pinhas e alguns paus secos, faziam uma fogueira onde se aqueciam e cozinhavam os alimentos.

Todas as manhãs, depois dos catraios saírem para a escola, ela e o marido iam ganhar o dia, como jornaleiros nas casas dos agricultores desta região.
Ao meio dia, comiam por lá a sua bucha (farnel). 

O pai contou que este casal apareceu por aqui sem nada. Nunca soube de onde vieram. Viviam ambos numa tenda feita com paus e ramos para se abrigarem.
Um dia, o povo, aqui da aldeia decidiu construir-lhes um abrigo melhor. Cada um deu o que podia. Meteram mãos à obra. Construíram esta casinha que eu conheci.

O proprietário deu o terreno delimitado por marcos. Começaram por abrir os caboucos  que encheram de pedras. Eram os alicerces, base das paredes de adobes (barro amassado e seco formando um tipo de tijolo grande).
Depois das paredes feitas montaram o telhado, duas portas e uma janela. Era uma divisão única mas já estavam abrigados das chuvas e do frio cortante do Inverno.
Ali criaram um rancho de filhos no maior respeito que se podia ter. Não se ouviam gritos nem palavras agressivas.

Na Páscoa recebiam a visita do Senhor Padre. Havia uma mesa encostada à parede onde colocavam sempre uma moeda pequena. Era aquilo que tinham. 
O Senhor Prior olhava a moeda e colocava lá mais algumas para que pudessem comprar pão para a ceia deles e dos filhos.
O Sacristão de capa vermelha, metia a mão num saco que ele segurava juntamente com a Cruz e deixava em cima da mesa algumas amêndoas pequenas e coloridas.

Os olhos dos garotos brilhavam com avidez procurando a amêndoa da sua cor preferida. Faziam contas e mais contas mas no final não chegariam para todos. Eles eram muitos e faltavam duas, mesmo tirando o pai e a mãe. Talvez eles não as quisessem.
O homem de capa vermelha não as contou. Não seria mais pobre e poderia ter deixado mais algumas...que pena...

A mãe viu a angústia nos olhos dos filhos. Quando o padre saiu pela porta da casa, ela lançou-lhe ainda um olhar de suplica que ninguém entendeu. 
Os garotos vieram com o pai para a rua e viram  o cortejo dirigir-se para a casa seguinte. A casa da Maria do Rio.


Depois entraram todos e esperaram que a mãe fizesse a divisão. 
Era ela que dividia o pão em fatias iguais, mas as amêndoas, essas eram mais difíceis de dividir. Os garotos iriam reclamar... o pedaço do mano é maior que o meu....

O silêncio corria por toda a casa e os foguetes deixaram de se ouvir. 
Então ela olhou os filhos com o seu ar de mãe e um sorriso de amor e disse-lhes:
- Não chegam para todos, mas todos queremos um bocadinho para recordar este dia.
Vamos parti-las. Depois vamos procurar fazer quinhões iguais.

Estenderam um pano branco na mesa e o pai foi buscar uma pedra. Limpou-a o melhor que pode e depois começou a parti-las uma a uma. A chama da fogueira reacendeu-se. Cada um recebeu pequenas migalhas de todas as amêndoas.
Nos olhos de cada um brilhava uma alegria que seria de todo impossível de descrever assim como o sabor de cada pedacinho do açúcar de amêndoa.

Os anos passaram. A Ti Charuta viu os filhos crescerem e saírem de casa. Depois da Escola Primária foram servir para casas abastadas. Eram todos rapazes e muito trabalhadores. O mais velho foi com um feirante vender calçado pelos mercados e feiras. 
Mais tarde montou o seu negócio. Hoje dizem que é um homem de sucesso.

Os outros seguiram-lhe o exemplo e ouvi dizer também que são pessoas realizadas.
A Ti Charuta morreu velhinha pouco depois do homem falecer.
Levava no rosto a simplicidade e o sorriso de gratidão ao povo desta terra que os ajudou nas dificuldades.


Desta casinha apenas me sobram alguns traços visuais.
Venderam o terreno e lá construíram uma bonita vivenda onde agora vive uma família que veio residir na nossa Aldeia.
Luíscoelho  

segunda-feira, 2 de abril de 2012

O Parvo da Arroteia

Rosas. Fotos
(foto Google)
Estas rosas são o meu carinho para todos
os pobres do mundo




Lembro de ouvir falar deste homem, e recordo como todos se riam das suas partidas, da sua simplicidade e dos seus dizeres.

«dá-me dez... que eu dou-te cinco» 
«Maria dá-me sopa...tenho a barriga a dar horas»
Seriam expressões usadas por ele ou que lhe eram atribuídas.

Não sei o seu verdadeiro nome. Se era António, Joaquim ou Manuel. Apenas lhe chamavam - o Parvo da Arroteia.
Era ainda menino, e já ele passava regularmente pelas aldeias ao redor batendo a todas as portas.

Era velho e caminhava sem pressa. Para ele, parece que o tempo não tinha valor. Os dias eram todos iguais assim como as suas preocupações. 
Com Sol ou com chuva ele caminhava por todos os caminhos sem se enganar ou se perder.


Não era alto nem baixo. Tinha uma estatura normal e a cor das suas roupas enquadravam-se com castanho dos caminhos de terra batida, poeirentos e cercados de grandes silvados.
Agasalhava-se com roupas gastas e desajustadas do seu tamanho ou ainda da época do ano.
A mesma roupa servia para todos os dias, quer fizesse frio ou calor.

Por cima de todos aqueles casacos compridos trazia uns alforges. Eram dois sacos ligados entre si e com cinquenta centímetros quadrados cada um. Enfiava a cabeça por uma abertura no meio deles ficando um para a sua frente e outro para trás. 


Dividia as esmolas pelos dois sacos. Na parte da frente colocava a comida: pão ou carne salgada. 
No saco que ficava nas costas colocavam feijão, batatas ou mesmo hortaliças.

Transportava ainda uma lata para cozinhar um caldo quando não tinha mais nada para comer. 
Quando lhe davam sopa, entornava-a dentro dessa lata e depois bebia-a sem pressa, saboreando cada gole como a melhor coisa deste mundo.

O cabelo e a barba confundiam-se na cor grisalha e emaranhada, não deixando perceber o tamanho de um, nem de outro. A completar o quadro tinha um boné com uma pala que lhe escondia os olhos. 


Um dia pensei, enquanto olhava para ele:
- Que lhe terá acontecido...? Porque lhe chamam parvo...?
Será que tem uma casa...?... e família...?
Perguntas que ainda hoje se mantêm vivas e sem resposta.

Ainda ouço o modo como chamava à nossa porta:
-Truz, truz, truz...Alguém me dá uma esmola por amor de Deus... e das alminhas que Ele lá tem...?
Depois começava numa oração de pai-nossos e avé-marias até que lhe viessem dar alguma coisa.

Recebia a oferta e fazia novas orações agradecendo a esmola.
Depois partia assim como veio no silêncio dos caminhos, apenas seguido por algum cão mais atrevido.

Para ele era indiferente o tempo ou o trabalho nos campos. Vagueava perdido, semanas a fio, correndo todas as casas. 
À noite, procurava um telheiro abandonado, um palheiro cheio de feno para os animais e aí se recolhia para dormir durante a noite. 
Outras vezes procurava um abrigo natural, numa encosta soalheira, protegida dos ventos frios e húmidos do norte.

Um dia, o Parvo da Arroteia caminhava pelo Caminho de Ferro do Oeste. Não viu, nem ouviu o comboio e lá ficou despedaçado. Ninguém sabe se foi ele escolheu este fim ou se foi colhido pela pouca sorte dos seus dias.

Nesse dia o pai fez de ordenança. Foi designado pelo Regedor para estar ali de guarda ao cadáver até que as autoridades viessem e dessem ordem para o levantar e transportar para o cemitério.
A nós não nos deixaram ir ver.

Todos os dias passavam por aqui pobrezinhos pedindo uma esmola por caridade e por amor de Deus, mas este foi o que mais me marcou, talvez pelas histórias que contavam dele.


Um dia passou por aqui um pedinte que trazia um cavalo preso pelas rédeas. Dizia que um grande incêndio lhe tinha levado tudo. Só ele e o seu cavalo se salvaram.
Recebeu a sua esmola e partiu na companhia do cavalo, carregado de coisas, que nem eu sei dizer para que lhe serviam. 
Parece que carregavam o que se salvou do incêndio e que, em cada coisa, havia ainda a esperança de recomeçar tudo de novo.


Cá em casa nunca duvidaram das histórias que por vezes eles contavam enquanto comiam um pedaço de toucinho cozido ou uma peça de fruta.


- Que seja tudo por amor de Deus e também das almas das nossas obrigações...dizia a mãe.
Luíscoelho