sábado, 27 de junho de 2015

A cor do desejo



Amanheceu nos lábios prenhes de calor,
Semeados de silêncios, clareando o dia.
Misturaram-se as cores com muita magia,
E transbordaram duas mãos de muito amor.
Ambos desejavam e também lhes competia
Esta dança fascinante e de bela ousadia.

Beberam sons em gestos de acordar
Teceram quadros cheios numa só cor
Dobraram os cantos sem ângulos de dor
E amaram num querer sem se cuidar
Porque a vida se fazia assim neste alvor
E nada mais se pode ter sem este amor.

Coseram num só ponto a força do seu querer 
Selaram o acordo de duas vidas num só viver
E amaram-se ainda mais neste amanhecer.
Luiscoelho
Junho/2015

sábado, 20 de junho de 2015

A Desrisca

livros
(foto google)


A quaresma era um tempo de penitência.
Em todas as aldeias a vida corria à sombra da Igreja que por seu lado controlava tudo e todos.
Nas leis da Igreja Católica existem mandamentos que os católicos devem observar.
Um deles diz: 
Todo o bom cristão deve santificar os Domingos e dias Santos de Guarda.
Devem também, nesses dias, assistir à missa completa.
Outro dos mandamentos diz que devem confessar-se e comungar uma vez por ano, na Páscoa da Ressurreição.


Para controlar estes preceitos havia a Desrisca.
Um livro grande onde constavam  os nomes de todas as famílias da Freguesia, divididos por lugares de residência.
Depois das cerimónias, missa e ofícios na Igreja, todos se dirigiam à Casa Paroquial para o senhor padre os desriscar no livro grande.
Conforme ia chamando ia desriscando no livro e assim ficava cumprido aquele preceito.


Certo dia, o Sr Abade chamou uma paroquiana que não tinha "papas na língua".
O seu nome era apenas Maria de Jesus, mas como haviam muitas só com este nome, e para as identificar a todas juntavam-lhe o apelido do marido ou do lugar de residência.
Esta Senhora era conhecida por Maria de Jesus Grilo. Talvez o Marido fosse alguém com dotes de boa qualidade.
Quando o Sr Abade chamou - Maria de Jesus Grilo!
Logo aquela respondeu:
- Corte lá o Grilo Sr Abade. Corte lá o grilo. O Sr não precisa dele e a mim, pobre viúva, não me faz falta.
Os presentes tiveram dificuldade em conter o riso. Havia medo e respeito.
O Abade rectificou e riscou o nome da paroquiana.


A mãe contava que iam muito cedo para a Igreja para cumprirem estes preceitos. Formavam grupos e levavam tochas acesas para se guiarem pelos caminhos e carreiros que os separavam da Igreja. Era longe.
A celebração da Missa era sempre antes do Sol nascer.
Durante a caminhada entoavam cânticos ou rezavam as ladaínhas.


Ao chegarem à Igreja apagavam as suas tochas num canto da parede que estava sempre preto dos tições. Era um costume antigo.
Um dia, o Padre aborrecido por esta tradição, chamou a atenção das pessoas que ali continuavam a apagar as tochas apertando-as contra a parede.
- Apaguem as tochas na rua e no chão. Esta parede está uma vergonha, toda suja.
Mas logo alguns lhe responderam
- Sempre foi assim e assim continuará a ser.
O mais atrevido ainda disse mais:
- O meu avô esmurrou aqui, o meu pai também e eu também irei esmurrar aqui como sempre fiz quer o Sr queira ou não queira! Ora essa!...


 Ouvi contar ainda que o antigo prior era cego.Teve a doença da lepra. A empregada guiava-o para o confessionário onde ele ouvia a confissão e perdoava os pecados em nome de Deus.
Era um homem cheio de bondade, além de ser cego.
Os mais novos diziam:
- Eu quero confessar-me ao padre Jacinto.
Ele não vê e eu posso dizer-lhe todos os meus pecados.

O outro padre era mais novo e muito finório. As raparigas e os rapazes diziam que não lhe podiam contar tudo.
- É padre é padre, mas é um homem como os demais...diziam   os mais velhos.
luiscoelho
Junho/2015

domingo, 14 de junho de 2015

Esta noite

Foto

Esta Noite
Sonhava dar-te um abraço.
Deixar-te muito apertado
Sensivelmente acordado 
E muito, muito mais acarinhado.
Mas, acordei alvoroçado,
O meu sonho foi trocado.
Nem te vi, nem te toquei
E  fiquei todo lixado.
Eu estava todo nu,
Já te tratava por tu,
Sem isto ter aceitado.
Que sonho desajustado 
Levantei-me atarantado
Procurei as minhas roupas
Para sair deste fado.
Junho/2015
Luiscoelho

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Peregrinação

Resultado de imagem para Fotos de peregrinos fátima
(foto google)

Era muito cedo quando acordaram os filhos. 
Os pais, já se tinham levantado há bastante tempo. Antes de saírem de casa deveriam deixar os animais tratados e acomodados. Só voltariam na tarde do dia seguinte.
Ele deu a volta pelos currais reforçando a ração. 

A mulher, em casa, ia arrumando a merenda num cesto, condensa. O farnel foi preparado na véspera.

Conferiu tudo à medida que ia arrumando dentro da condensa. O mais importante era mesmo a comida. Iriam comer com as mãos, sem facas, pratos ou garfos. 
Chegada a hora da bucha, procuravam uma sombra. Depois sentavam-se no chão ao redor da merenda e seguravam nas mãos um pedaço de pão com o conduto ou, numa mão a carne e na outra o pão.
Não havia fruta, mas nunca faltava água e um pouco de vinho.

Desta vez arranjaram o galo grande de casta. Era um grande galo de pescoço pelado. A cauda de penas castanhas e azuis dava-lhe ares de imperador. Era muito bonito.

Não deixava que alguém se aproximasse das suas galinhas. Ele era o maior. Bicava o cão, os gatos e até as pessoas. A dona, que o conhecia muito bem, quando lhes ia dar um pouco de milho ou de verdura tinha de levar um pau.
- Tu tem juizo! Não tentes morder-me! Olha o pau! Um destes dias acabo contigo! Dizia-lhe com um ar ameaçador.
Naquele dia cumpriu a ameaça.
Quando, de madrugada, lhe dava o milho,  o galo fez carreira para ela, mas nesse momento ela mandou-lhe uma tal cacetada que o deixou KO.

- Tu não estavas destinado para o nosso farnel, mas já está, já está! Acabaram-se com as tuas bicadas. Grande estafermo!

Depois de arranjado e cortado em pequenos pedaços meteu tudo num tacho de barro e deixou-o refogar.
Ficou triste por ter matado o galo grande, mas ao mesmo tempo ficou contente pois era um bom farnel para os quatro. Deixou em casa as patas, a cabeça e outras miudezas para no dia seguinte. Depois, quando chegassem a casa, iria fazer um arroz malandro naquele molho do guisado.
  
Temos de nos despachar meninos. É longe e depois o calor começa a apertar!
São cerca de 30 quilómetros de distância de casa até ao Santuário.  Era a primeira vez que levavam os filhos. A menina devia ter onze anos e o irmão ainda não tinha feito os nove de idade.
Foi no ano de 1957, em Julho.
A mana prometeu:
- Minha Nossa Senhora, se o mano passar no exame da terceira classe vamos a Fátima rezar e agradecer.

Depois disse aos pais da sua promessa.
Ficaram muito admirados pelo carinho com o irmão, mas também lhe disseram que não deveria prometer pelos outros e que deveria consultar primeiro os pais.
Quando fores grande decidirás por ti, mas agora ainda és muito nova.

Marcaram a data para um dia de peregrinação. Assim iriam em grupo com outras pessoas.
- Estão prontos? Disse o pai. Então vamos embora. 
No céu havia muitas estrelas e a manhã senti-se fria.
A Mãe carregou o cesto da merenda à cabeça e o pai levava dois cobertores enrolados e presos ás costas como se fosse uma mochila.
Ora então vamos lá com Deus, disse a mãe que se benzeu e começou uma oração. 
Em fila e sem saber das distâncias a percorrer os meninos seguiam satisfeitos, até pensavam que iam para uma festa.

Caminharam por muito tempo até chegarem à cidade de Leiria. O Sol ia muito alto e dava sinais de um dia quente. 
No sopé da encosta da Senhora da Encarnação, mesmo junto às ruínas da antiga praça de touros, sentaram-se à sombra de uma oliveira. Descansaram as pernas e comeram alguma coisa. A mãe dizia:
- Temos de aliviar o cesto. Isto pesa. Agora já vai mais leve. 

- Vamos embora que a viajem é grande. Disse o pai.

Caminhavam acompanhando outros peregrinos que faziam aquele percurso. Alguns quilómetros mais adiante começaram as ladeiras da encosta da Serra. As pernas cansadas doíam. 

- Ainda falta muito? Perguntou o rapazito...

- Estamos a chegar ao Soutocico. Deve ser metade do percurso, respondeu-lhe o pai.
- As minhas pernas doem tanto, reclamava o miúdo.
As subidas eram cada vez mais duras, o cansaço tomava-lhe as forças.
- Pois, mas temos de continuar. Agora não temos escolha.

Seguia no grupo uma família conhecida que levava um burro carregado e uma menina montada. 

O pai na sua imaginação, disse-lhe:
- Agarra-te à albarda do burro. Ele puxa-te!
Entre queixas e muitas lamurias lá foram subindo a serra e descobrindo nomes de localidades diferentes. Curvachia, Arrabal, Freichial, Lagoa, Chainça, Santa Catarina da Serra.
Já perto do Santuário a mãe disse-lhes:
- Já se vê a torre da Basílica. Estamos perto.
Os olhos dos garotos abriram-se ainda mais de tanto cansaço. 

Chegaram ao Santuário bem depois da meia tarde.

Era uma praça enorme, encimada com uma igreja muito grande e diferente de todas as que conheciam. 
No centro havia a Capelinha das Aparições. Era uma construção pobre. Um simples telheiro onde se amontoavam muitas muletas e também coisas de cera que os peregrinos ali iam deixando. Foram estas imagens que sempre guardou. Os peregrinos ali à volta iam rezando e cantando e outras vezes estavam apenas em silêncio.

Procuraram um canto na escadaria da Basílica, de modo a protegerem-se do frio do norte durante a noite e também de onde podiam ver todas as cerimónias.

Estenderam os cobertores e os meninos deitaram-se.
O som dos cânticos e do órgão não eram maiores que o sono que os adormeceu. 
O pior foi quando uns senhores que traziam umas correias por cima dos casacos os mandaram sair dali.
- Não podem pernoitar aqui. Têm de sair já. Vai começar a procissão das velas e ninguém pode estar nas escadarias da Basílica.

O pai pegou na trouxa e a mãe no farnel. Não sei onde passaram a noite, mas sei que a cama foi no chão e o agasalho foram os cobertores.

Acordaram com o som dos sinos e dos cânticos. Estava frio. Aquela gente movimentava-se para todo o lado. 
Começaram as cerimónias e depois da missa realizaram a procissão do adeus. Todos agitavam no ar os lenços brancos e de outras cores. 
Viam-se lágrimas nos olhos de muitas pessoas.
- Oh Fátima adeus, Virgem Mãe adeus.

O regresso foi de autocarro.

Tão cedo não farão promessas. 
Luiscoelho
2015/Junho