sábado, 20 de junho de 2015

A Desrisca

livros
(foto google)


A quaresma era um tempo de penitência.
Em todas as aldeias a vida corria à sombra da Igreja que por seu lado controlava tudo e todos.
Nas leis da Igreja Católica existem mandamentos que os católicos devem observar.
Um deles diz: 
Todo o bom cristão deve santificar os Domingos e dias Santos de Guarda.
Devem também, nesses dias, assistir à missa completa.
Outro dos mandamentos diz que devem confessar-se e comungar uma vez por ano, na Páscoa da Ressurreição.


Para controlar estes preceitos havia a Desrisca.
Um livro grande onde constavam  os nomes de todas as famílias da Freguesia, divididos por lugares de residência.
Depois das cerimónias, missa e ofícios na Igreja, todos se dirigiam à Casa Paroquial para o senhor padre os desriscar no livro grande.
Conforme ia chamando ia desriscando no livro e assim ficava cumprido aquele preceito.


Certo dia, o Sr Abade chamou uma paroquiana que não tinha "papas na língua".
O seu nome era apenas Maria de Jesus, mas como haviam muitas só com este nome, e para as identificar a todas juntavam-lhe o apelido do marido ou do lugar de residência.
Esta Senhora era conhecida por Maria de Jesus Grilo. Talvez o Marido fosse alguém com dotes de boa qualidade.
Quando o Sr Abade chamou - Maria de Jesus Grilo!
Logo aquela respondeu:
- Corte lá o Grilo Sr Abade. Corte lá o grilo. O Sr não precisa dele e a mim, pobre viúva, não me faz falta.
Os presentes tiveram dificuldade em conter o riso. Havia medo e respeito.
O Abade rectificou e riscou o nome da paroquiana.


A mãe contava que iam muito cedo para a Igreja para cumprirem estes preceitos. Formavam grupos e levavam tochas acesas para se guiarem pelos caminhos e carreiros que os separavam da Igreja. Era longe.
A celebração da Missa era sempre antes do Sol nascer.
Durante a caminhada entoavam cânticos ou rezavam as ladaínhas.


Ao chegarem à Igreja apagavam as suas tochas num canto da parede que estava sempre preto dos tições. Era um costume antigo.
Um dia, o Padre aborrecido por esta tradição, chamou a atenção das pessoas que ali continuavam a apagar as tochas apertando-as contra a parede.
- Apaguem as tochas na rua e no chão. Esta parede está uma vergonha, toda suja.
Mas logo alguns lhe responderam
- Sempre foi assim e assim continuará a ser.
O mais atrevido ainda disse mais:
- O meu avô esmurrou aqui, o meu pai também e eu também irei esmurrar aqui como sempre fiz quer o Sr queira ou não queira! Ora essa!...


 Ouvi contar ainda que o antigo prior era cego.Teve a doença da lepra. A empregada guiava-o para o confessionário onde ele ouvia a confissão e perdoava os pecados em nome de Deus.
Era um homem cheio de bondade, além de ser cego.
Os mais novos diziam:
- Eu quero confessar-me ao padre Jacinto.
Ele não vê e eu posso dizer-lhe todos os meus pecados.

O outro padre era mais novo e muito finório. As raparigas e os rapazes diziam que não lhe podiam contar tudo.
- É padre é padre, mas é um homem como os demais...diziam   os mais velhos.
luiscoelho
Junho/2015

24 comentários:

  1. Esses preceitos do catolicismo, conheço-os muito bem, principalmente os da época da quaresma. Os "causos" aí relatados, me fizeram lembrar do Frei Camilo,franciscano italiano, da nossa paróquia, que era velhinho e surdo, e a fila de seu confessionário era a maior de todas, só de adolescentes,.e a penitência - três pai nosso, três ave-maria e uma salve-rainha - era sempre a mesma para todas. Foi bom, recordar: tudo igual, lá como cá!

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  2. É interessante registar estes ritos antigos para quem os não conhece e para memória futura. Essa da «desrisca» foi absoluta novidade para mim...)
    Congratulo-me, no entanto, pelo facto de não se usarem mais...

    Beijinhos

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  3. Estimado Amigo e Ilustre Romancista Luis Coelho, algo de belo em Sua maravilhosa escrita que nos dá a conhecer algo que muitos desconhecem, neste país à beira mar plantado, adorei.

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  4. É muiiiito pertinente este seu testemunho , Luis . Não me lembro da desrisca mas hoje, mais idônea, acho que na Igreja não foi tudo mau. Mas debilitou e muito a espiritualidade que cada um sente à sua maneira . Mas tarde. Só hoje me dou conta como foi a juventude . Mal vivenciada.
    Obrigada pelas suas palavras
    Fraterno abraço

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  5. Relevante lo que nos cuentas de este libro, que prácticamente ejercía el control sobre la comunidad religiosa. Prácticamente, como una especie de registro de vida. MI abrazo. Carlos

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  6. Processos arcaicos de controlo do rebanho que tresmalharam muitas ovelhas.
    É bom não esquecer os erros do passado.
    Abraço.

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  7. ...Padre é Padre mas é um homem como os demais...

    não conhecia este costume da desrisca...seria tão bom
    se pudessemos desriscar tantas linhas mal traçadas
    pela vida afora!

    beijinho desde um Brasil com frio, meu querido amigo!

    Vivi

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  8. Olá Luis. Muito interessante esse Desrisca e não me lembro desse acto; lembro sim que nessa altura se tinha de fazer a desobriga, que era confessar e comungar pelo menos na Páscoa ( assim diziam as regras da igreja ) pelo que vejo é mais ou menos o Desrisca, só que não havia o tal do livro, pelo menos que me lembre. Um beijinho. Luis e obrigada por partilhares estes casos que faziam parte da nossa educação religiosa, principalmente nas aldeias. Uma boa semana
    Emília

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  9. Gostei, amigo. Adquiri um pouco mais de cultura e conhecimento da tradição católica. Muito bem narrado. Um abraço.

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  10. Do período da Páscoa, e da juventude na aldeia, lembro bem a visita pascal.
    Que nem sei se é tradição que ainda se mantenha

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  11. Interessante este ritual da Desrisca.Nunca tinha ouvido falar.
    Ainda bem que a Igreja Católica se modernizou para não perder os seus fiéis. O importante é buscar Deus pela fé, independente de religião ou rituais.

    Abraço.

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  12. Olá meu amigo, muito bom dia, espero que esteja feliz e de boa saúde assim como as suas lindas histórias.
    Meu grande amigo mais valem poucos do que nenhuns aqui eu me refiro aos meus amigos que um de cada vez foram chegando assim como vão abalando, mas o que mais importa é o que vem, e vai,deixando sempre algo de bom dentro de cada um de nós.
    Amigo mais uma linda história. Espero que ela tenha seguimento, pois me parece que só falta aí o padre ser corrido, gostei sobretudo do canto preto dos tições, talvez ele tive-se tempo de pintar o lugar da cor preta pois assim não era tão notada, e a do tire daí o Grilo também acho bem, se o pobre já estava a fazer tijolo! Para que a pobre da mulher o devia de carregar, só faz falta mesmo o que está, cada um que se vai é só mais um número na história que findou.
    Tenha um lindo e santo dia, adoro as suas lindas narrativas e poesias, beijinhos de luz sempre pode que um dia também chegue aí a escuridão da Igreja.

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  13. Olá,Luís...
    "desrisca"novidade para mim...o mundo, de certa forma, está impregnado e constituído por um número considerável de causos, hierofanias , ritos e manifestações do "sempre foi assim e assim continuará a ser"...talvez, e essa é a minha opinião, A Quaresma , Hoje, mudou um pouco,com as mitigações , os costumes e avanços, que faz parte, pois, antigamente, de modo geral a Quaresma era um tempo onde os dias de jejum e abstinência eram observados com rigor e tudo falava de penitência, visando a Paixão e morte de Jesus Cristo.... agradecido pelo carinho,belos dias, abraços!

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  14. Admiro, muito, o teu engenho e arte para nos transportares por estes usos e costumes que tão rica torna as nossas tradições.
    Não conhecia mas, graças ao Luis, mais uma coisa fiquei a saber.
    Um abraço

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  15. Essa do corta o grilo,
    está muito engraçada
    no buraquinho escondido
    a cantar de madrugada.

    Deve ter sido uma risada,
    lá adro da Santa Igreja
    não faz falta para nada
    a parte do grilo que sobeja.

    Pois, é amigo Luís,
    se a senhora mandou cortar
    o grilo, foi porque quis
    nunca mais o ouvir cantar!

    Tenha uma boa noite amigo Luís, um abraço.
    Eduardo.

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  16. El problema es una oportunidad para que usted cambie y aprender a hacer lo mejor en la vida.
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  17. Oi, Luis!
    O ritual da desrisca deve de ser local, pois nunca vi... Gosto dos rituais, mas alguns são - como esse da desrisca - uma forma de controle que para a consciência é desnecessário, afinal, se Deus sabe de tudo e de todos, para quê haveria de ter um interlocutor? Passar pela confissão é por si um ato de punição (rs*). Ainda bem que meus pecadinhos são confessáveis...
    De um rebanho sempre tem os rebeldes. Tanto melhor!
    Beijus,

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  18. Muy interesante lo que hoy nos regalas
    Cariños

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  19. Não tinha conhecimento dessas coisas, não por ter menos fé ou mais, mas acredito amigo Luís que não precisamos de tanto para se chegar a Deus, mesmo porque a minha fé que independe de religião, busca a paz e o conhecimento de cada uma delas que possa me levar a Ele e eu tenho recebido Graças e caminhos certos a seguir, pois em nossas conversas (eu com Deus), sempre traçamos o melhor para as minhas buscas.

    Abraços
    Rafael

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  20. É um fenômeno muito interessante desse aspecto provinciano que se cria no seio religioso. Mesmo discordando disso acredito ser um coisa meio que antropológica na comunidade local - algo que fortalece o sentimento de unifica o grupo e mantém a tradição da continuidade.

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  21. Em todas as aldeias a vida corria à sombra da Igreja que por seu lado controlava tudo e todos.

    *Luís Coelho, em muitos lugares aqui no Brasil , ainda assim o é !!!

    *Sou Católica Apostólica Romana praticante, porém , não concordo com tudo o que diz a nossa igreja

    que é santa e pecadora ao mesmo tempo !!!

    *Meu papai foi educado na religião católica e minha mamãe, na crente presbiteriana !

    Meu pai era umbandista por opção e minha mãe, católica, também por opção !

    Como percebes, tive um pouco de conhecimento sobre cada religião destas e de outras também

    e escolhi mesmo ser católica apesar de muitas vergonhas que ainda existem na minha religião !!!

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  22. Oi Luis,
    è a primeira vez que ouvi dizer de A Desrisca.
    Não era fácil não
    Beijos

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  23. Amigo Luís, estes seus contos transportam-me para as histórias que a minha avó me contava sobre estas tradições.
    Outras eras, outros costumes.

    Um beijinho

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