quinta-feira, 4 de setembro de 2014

O pão de cada dia


Resultado de imagem para fotos broa de milho
(Foto google)

A pobreza era comum em toda a aldeia, mas ninguém se queixava.
Todos os dias eram dias iguais a tantos que já passaram e seriam certamente iguais a muitos outros que ainda haveriam de vir.
A grande diferença eram os sonhos de cada pessoa - lutar pela vida.
- Talvez um dia a sorte nos bata à porta…Diziam muitas vezes.

A panela de ferro, de três pernas, estava sempre na lareira. Era lá que diariamente se fazia o caldo da sopa.  
A dona da casa, antes de sair para os campos, deixava na lareira junto à fogueira a panela com água e feijão ou grão-de-bico a cozer.
Depois cerca do meio-dia reacendia a fogueira e acertava a água na panela. Enquanto esperava que a água fervesse escolhia as couves. Finalmente acertava os temperos para que ficasse mais apetitosa. 
Alguns dias substituía as couves por feijão-verde, ervilhas ou outros legumes se era tempo deles.
Para tornar o caldo mais cremoso deixavam cozer junto com o feijão duas ou três batatas que se desfaziam e tornavam o caldo mais saboroso. Para temperar havia uma ponta de toucinho salgado ou duas colheres de azeite.

Diariamente era cozinhada uma nova caldeirada. A receita era sempre a mesma. As verduras alteravam nas sopas conforme a época do ano. 
A sopa que sobrava do meio-dia comia-se à noite, à ceia.
Muitos dias já era pouca e não daria para todos. Nessas noites acrescentava-se mais água e alguma farinha de milho. Eram as papas quando ficava mais espessa ou esparregado se ficava mais líquido e solto. 
Se algum dos meninos se queixava:
- Não gosto disto...
Logo recebia a resposta:
- Deixa na beira do prato...Tantos meninos com fome e vocês armados em fidalgos...

Para acompanhar a sopa e aconchegar o estômago comiam uma côdea de broa de milho. Alguns dias os mais pequenitos perguntavam:
- E o conduto?
- É broa com dentes e é muito boa...Prova e verás!...Respondiam os mais velhos.

A vida na aldeia fazia-se entre a casa e as terras de cultivo ou as vinhas perdidas nas encostas voltadas a Sul ou a Poente. O descanso era apenas ao domingo.
Os mais pequenos iam à Escola e aprendiam muitas histórias nos livros. À noite repetiam-nas animando os serões à volta da fogueira. Era também um treino de leitura.
Eram, sempre histórias bonitas.
Um dia, uma das irmãs mais velhas que nunca tinha ido à escola, acrescentou no final da leitura:
- Havias de ir cear lá onde se passou essa história! Nunca mais ceavas...

Luíscoelho

22 comentários:

  1. Retorno-me aos tempos do sítio da minha vó em que tudo era difícil mas não aparentava, pois a felicidade da família reunida, os netos correndo nos boxes junto aos cachorros, a comida no fogão à lenha e toda a simplicidade interiorana ofuscava a leve escassez que na verdade era um infímo reflexo de uma vaidade quase incurável.

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  2. Seus contos são verdadeiras viagens no túnel do tempo. Parabéns.
    Abraço

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  3. Recordações lindas que nos mostram a simplicidade da vida que tão esquecida por muitos anda! Adorei mais essa leitura! abração,chica

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  4. Contos onde a simplicidade é o tema emocionam o meu coração.
    Um grande abraço,
    Élys.

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  5. Parecem tão recentes, cenas assim, sobre a vida familiar, nas rodas de conversa, à mesa, para saborear as refeições de forma harmoniosa. Na vida vida simples de cada dia, hoje nos parece que era mais bem vivido
    , que eram mais longas as 24 horas...Bela crônica, Coelho, fez-me sentir o sabor da sopa de feijão (que sobrava do almoço), que mamãe passava pela peneira e acrescentava folhas de couve, rasgadas, e tomava-se com fatias de pão. Bons e saudosos tempos!

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  6. Gostei do seu texto, é importante que se divulguem tais realidades para que não se desperdice alimento, hábito que a muitos anos mantemos nessa casa. Um abraço, Yayá.

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  7. "- É broa com dentes e é muito boa...Prova e verás!...Respondiam os mais velhos."

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  8. Talvez seja, hoje, muito diferente a nossa pobreza
    Mas é igualzinha a mesa
    talvez o que mude
    em vez de sopa e pão
    prevaleça o fast-food

    (é um privilégio ler-te)

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  9. siempre tan reflexivos e interesantes tus textos. gracias por compartir.
    un abrazo

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  10. ~ ~ Teria muito para dizer, pois sou uma apaixonada pelo estudo de nutrição. Tentarei ser o mais sucinta possível.

    ~ ~ Nessa altura, as pessoas que viviam na aldeia alimentavam-se muito melhor do que os pobres que viviam nas grandes cidades.
    ~ ~ Feijão e grão, acompanhados de broa, fornecem proteínas e ferro. As couves forneciam a vitamina C que ajudava a absorção do ferro.
    ~ ~ Além disto, apanhavam sol, diretamente, ou filtrado pelas nuvens, o que lhes fornecia uma boa quantidade de vitamina D, muito importante para a imunidade.

    ~ ~ Nas cidades, os pobres ou desempregados comiam caldo verde e broa e pouco ou nenhum sol apanhavam. O bacilo koch invadia os pulmões dos organismos enfraquecidos e anémicos.
    ~ ~ Ontem, estive a reler a extraordinária biografia de Álvaro Cunhal. O seu pai era advogado, nem sempre tinha trabalho, era um homem de esquerda. Álvaro perdeu dois irmãos com tuberculose. Apenas lhe restou uma irmã muito mais nova.

    ~ Nas cidades, a pobreza é, quase sempre, muito sigilosa. É designada por "pobreza envergonhada". ~

    ~ ~ ~ ~ ~ A sua humildade é impressionante e muito louvável. Revela a sua nobreza de caráter.~ ~ ~ ~ ~

    ~ ~ ~ Cordial abraço. ~ ~ ~

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  11. Tempo que nem dá para relembrar...

    (Por mim continuo a fazer a sopa tal como descreve aí - mas sempre com azeite e nunca com toucinho...)

    Beijinhos

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  12. É bom relembrar tempos que já foram mais passado do que são e recordar a essas criaturas idiotas que andam desperdiçando água que na Palestina e em África pessoas morrem por causa dela e da sua falta...

    Bons sonhos

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  13. És um mestre nesta arte de nos transportares a tempos que nos trazem à memoria recordações.
    Vida difícil, mas no meio da miséria havia uma felicidade natural, um respeito que invejamos e uma solidariedade que foi esquecida.
    Parabéns Luis!

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  14. luís,
    E se eu disser que, ainda hoje, me sabe bem uma sopinha quentinha (no Inverno) com pão ou broa a acompanhar?

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  15. Oi luis,
    A fome dói o estômago e a vontade revira as lombrigas e quantas pessoas hoje vão comer nos lixões.
    Ainda bem que vocês tinham um caldinho quentinho e broa de fubá.
    Depois sempre a vida melhora, é só ter persistência, saúde e força de vontade.
    Beijos
    Lua Singular

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  16. O teu texto fez-me retroceder no tempo até à Rua da Cruz das Guardeiras, de Moreira da Maia, à casa da minha avó, onde vivi tudo isso. Mas fui feliz, que bons tempos aqueles!
    Cenas que ficaram agarradas à minha mente e que hoje recordo orgulhoso.
    Abraços de vida, meu amigo

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  17. Renovando em cada leitura de seus contos e narrativas meu apreço pelo modo como vêm apresentados certos temas de um passado não tão distante daquilo que acontece ainda em nossos dias, como a fome,a pobreza. ..A diferença,entretanto,ao meu ver é que parece que antes as pessoas sabiam melhor enfrentar essas dificuldades, mesmo existindo crise não se desesperavam tanto a ponto de buscar a criminalidade como forma para sobreviver.Eis na sua história ótimo exemplo de saídas par se enfrentar certos problemas desta vida. Bom fim de semana amigo!

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  18. Gosto muito de broa de milho que compro com frequência. Cheguei a ter uma panela de ferro com 3 pernas e
    adorei a sua história.Sou do tempo e, que se comia pão com cebola...
    Pois é, hoje (felizmente) para muitas crianças nem sabem avaliar o que isso era.
    Como sempre muito bem contada a sua história.
    Desejo que o amigo esteja bem.
    Bj.
    Irene Alves

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  19. A sopa era forte, nutritiva, bem melhor que certas "iguarias" que hoje alimentam grande parte da população. Alertam os especialistas em nutrição e saúde para o aumento da diabetes, obesidade e de outras maleitas pelos erros que cometemos todos os dias. Hoje, já não há tempo para fazer a sopinha,não é?
    Nesse tempo que o Luís evoca o melhor mesmo era a sobremesa: as histórias contadas à volta da mesa ou da lareira no inverno.
    Gostei da história pelo conteúdo e pelo estilo encontrado. Parabéns!

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  20. A lareira,o centro da vida.
    A broa tão gostosa.

    Abraço

    Olinda

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  21. Luis que história deliciosa, parte da vida de muitos, adorei, abraços Luconi

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  22. Olá amigo Luis Coelho

    Obrigado pela visita.
    É sempre um prazer recebê-lo no meu modesto espaço de opinião.
    Notei que em 2013 diminuiu drasticamente a sua actividade na blogosfera e, em 2014, também é menor se comparada com anos anteriores.
    Isso deve-se a alguma circunstância impeditiva ou, pelo contrário, trata-se de um procedimento devidamente ponderado?
    Pela minha parte, devido à actividade que exerço como Presidente da Direcção de uma Colectividade e outros compromissos familiares, resta-me muito pouco tempo para dedicar ao meu blogue e às redes sociais, motivo pelo qual não tenho visitado com frequência alguns dos blogues que antes eram objecto da minha atenção. Está, neste caso, o seu brilhante blogue, com o qual me identifico totalmente, dado que muitas das coisas que escreve se enquadram perfeitamente nos hábitos e costumes da minha região transmontana e da minha juventude.
    De qualquer forma, fazendo minhas as suas palavras, "os amigos podem estar ausentes mas nunca esquecidos", se tivesse mais tempo, não deixaria de lhe enviar um abraço com mais assiduidade.
    Forte abraço, amigo Luis Coelho e votos de óptima saúde e boa disposição.

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